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Contínuos e não-ditos da transmissão geracional

Atualizado: 30 de out. de 2023


"Portrait of Frida's Family" de Frida Kahlo (1950-1954)

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, abordo a transmissão geracional, um conceito da psicanálise que se refere ao processo pelo qual conteúdos psíquicos, sejam eles conscientes ou inconscientes, são transmitidos de uma geração para outra.

Texto: O sujeito, segundo Piera Aulagnier (1975), vem ao mundo com um contrato narcisístico com a sua família, o qual não assinou e sequer consentiu, mas que para ocupar o lugar dentro da dinâmica familiar, precisa estar de acordo com as expectativas presentes. Segundo Maria Monti, esse contrato tem a função de um vínculo geracional, garantidor de continuidade, bem como de reconhecimento e pertencimento. Dessa forma, Monti acrescenta que, desde o início da vida, de forma inconsciente tanto da parte da família como do recém-nascido, o sujeito se vê diante de uma missão implícita geracional, que o insere na trama histórica da sua rede familiar.


Assim, a psicanálise nos lembra a todo momento que o conceito de indivíduo é extremamente frágil. A ideia ilusória de um eu unificado esconde o quanto somos construídos por uma constelação de outros significativos, mesmo que através de transmissão. Dentro da unicidade do corpo, há um universo relacional. A psicanálise, portanto, faz uma aposta na singularidade, mas rejeita a ideia de unidade individual. Para refletir sobre singularidade é preciso justamente afastar-se da individualidade – ou conforme Saramago, só vemos a totalidade da ilha se conseguimos sair dela. Assim como o espaço psicanalítico, que não é nem o do paciente e nem o do analista, mas aquilo que ocorre entre ambos, um espaço relacional, cujo domínio não está na individualidade.


Por essa razão, a ideia de fazer análise para se autoconhecer também possui algum tom de resistência. Afinal de contas, o autoconhecimento não deixa de ser outro tipo de restrição, talvez uma restrição mais sofisticada, mas ainda sim um modo de se pôr limites ("sei que sou isso e não aquilo outro, sei que desejo isso e não aquilo"), enquanto que o que o encontro analítico busca é a expansão psíquica. Um exemplo prático de que o autoconhecimento também pode ser autolimitante é quando se imagina uma situação, e sabemos precisamente como iremos nos sentir nela. Podemos pensar "se isso acontecer, com certeza ficarei muito angustiado ou aflito". Trata-se de um autoconhecimento, mas que aponta para a repetição do que se sabe e não para a criatividade. A expansão psíquica, por outro lado, busca acolher o que há de desconhecimento, não só na vida, mas em si.


Nesse sentido, pensar aspectos que envolvem a transmissão geracional também é um modo de expandir as ferramentas conceituais que a psicanálise possui para pensar a subjetividade. Neste texto, daremos mais ênfase à transmissão no contexto familiar. Contudo, o tempo desse conceito pode muito bem ser distendido, pensando em geração em termos de décadas ou grandes períodos historicamente reunidos. De algum modo, tal ideia já se fazia presente nas considerações de Freud, apesar de não aparecer exatamente nesses termos. Penso que se trata mais de um destaque a um elemento sempre vivo na teoria psicanalítica do que necessariamente de uma nova abordagem.


Na literatura, um bom exemplo de atravessamentos geracionais está na obra "Cem anos de Solidão" do escritor colombiano Gabriel García Márquez. O livro cruza a história da família Buendía durante diversas gerações e se inicia com uma lembrança: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.


Contínuo geracional


A geracionalidade pode ser entendida como uma espécie de convocação a assumir determinadas posições, determinados lugares subjetivos no contexto familiar, mesmo que seja através das lacunas e do não-dito. Conforme mencionado, esse conceito também costuma ser utilizado em um viés sociológico. Para se compreender melhor o Brasil de hoje, por exemplo, é fundamental atravessarmos a sua história, que está relacionada a acontecimentos e traumas silenciados que se repetem de outras maneiras: o período de escravidão, o colonialismo, os anos de ditadura, a desigualdade social, a predominância da estrutura patriarcal, entre outros.


A ideia psicanalítica de geracionalidade aproxima-se de outros dois conceitos: trauma e transmissão psíquica. Ao contrário do que pode parecer, não implica em desresponsabilização do sujeito, uma vez que a ideia de responsabilidade em psicanálise comporta uma ética diante do desconhecimento e do que se faz disso.


O conceito de transmissão psíquica remete a um conteúdo que transborda. Segundo Mauro Rehbein e Daniela Chatelard, "o não dito, o não simbolizado, também se constitui em lugar comum da transmissão geracional nas relações familiares". René Kaës dirige o seu conceito de transmissão para a negatividade, no sentido do que é lacunar e não do que é ruim, ou seja, "aquilo que é transmitido de modo irrealizado, impensado, não representado, de uma geração para outra". Remetendo a Freud, cita o exemplo das lacunas e feridas narcísicas dos pais e a transmissão aos filhos, deslocando para a geração filiar um jogo de antigas expectativas.


Implicitamente ou diretamente, no contexto analítico o discurso do sujeito costuma trazer algo da ordem de um legado ou de uma espécie de herança transmitida no sentido de desejos, expectativas, medos, dívidas, em que o sujeito se vê diante da necessidade de realizar ligações psíquicas de conflitos que também atravessaram sua geração familiar. Em mães diante dos seus filhos, pode haver o medo de que a criança se contagie psiquicamente por certos elementos que estão circulando no meio familiar.


Segundo este artigo, que também leva em conta as contribuições do psicanalista francês René Kaës, "a transmissão psíquica compreende um processo estruturante sobre a herança genealógica de uma família e ocorre em nível inconsciente, na maior parte das vezes, transitando no espaço intrapsíquico e intersubjetivo". Entretanto, acrescenta posteriormente que alguns autores sinalizam que transmissão também pode ocorrer a nível pré-consciente, via transmissão da palavra, como nas histórias de eventos ocorridos.


A família é um lugar em que "os conteúdos psíquicos, que atravessam as gerações, circulam, sofrendo ou não transformações ao longo de novos arranjos familiares", complementa outra publicação. É importante lembrar que tais conteúdos psíquicos não são necessariamente acontecimentos no sentido factual do termo, mas também fantasias inconscientes.


O espaço familiar também é pensado como um tipo de continente psíquico. Em psicanálise, o uso do termo continente geralmente se refere a algo como um abrigo psíquico aos conteúdos, permitindo a sua transformação. Fala-se muito, por exemplo, da função continente do analista dentro do contexto clínico. A função continente da família também é exercida, como em situações de perdas, adoecimentos e outras ocorrências abruptas. Entretanto, o continente pode não dar conta de determinados conteúdos, por razões das mais variadas, comprometendo assim a elaboração de conflitos, angústias e impasses.


Lacunas, não-ditos


O traumático indica uma negatividade representacional, o que explica o título do artigo de Maria Moreno e Nelson Coelho Junior, que remete ao trauma como o "avesso da memória" ou ainda como uma “memória sem lembranças”. Os autores abordam a não-representação e a negatividade que situações que excedem a absorção psíquica instalam no sujeito em termos de transmissão geracional: "Ao contrário das protofantasias originárias, que carregam em si um sentido transpessoal ou impessoal, quando existe uma lacuna de sentido que não pode ser significada e desdobrada no psiquismo dos pais, esta, ao ser transmitida passa a funcionar como um buraco na tópica do sujeito".


Segundo Claudia Moreira, o trauma carrega tendências paradoxais de insistência e, ao mesmo tempo, "nada querer saber". Os psicanalistas húngaros Nicolas Abraham e Maria Torok utilizam o conceito de cripta para pensar tais fenômenos que parecem colocados dentro de uma sepultura, sem possibilidade de ser processada psiquicamente. Assim, há uma implicação entre fantasmas geracionais (no sentido de experiências psíquicas e acontecimentos silenciados) e criptas (espaços selados dentro do psiquismo) que são reatualizados na vida do sujeito, principalmente através de processos identificatórios, bem como uso de mecanismos de defesas como o desmentido e a cisão.


Desse modo, os elementos geracionais também são conteúdos sem cobertura representacional, ou seja, não foram ligados e costurados psiquicamente, sendo assim, não encontram encadeamento psíquico, apresentando-se como uma insistência via repetição e reatualização em novos contextos. Nesse contexto, o silêncio sobre um acontecimento familiar é uma das formas de impedir que determinadas experiências sejam articuladas na rede de representação psíquica.


Freud em “Os instintos e suas vicissitudes” (1915) já havia comentado que “o indivíduo é um apêndice temporário e passageiro do idioplasma quase imortal, que é confiado a ele pelo processo de geração”. Criptas e fantasmas psíquicos fazem parte da história do sujeito, muitas vezes com aquilo que sequer chegou a ser consciente, diferindo do recalcado dinâmico. O não-representado e as criptas camufladas cruzam gerações, considerando ainda o estado de prematuridade e vulnerabilidade à invasão narcísica durante o início da vida, bem como a constituição do seu mundo fantasmático. Articular e integrar tais pontos com a história subjetiva do sujeito é permitir um espaço de maior expansão psíquica.

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