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Sonhos: desejo e enigma

Atualizado: 20 de out. de 2023


Salvador Dalí (1944)

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, discuto a ideia de que os sonhos, além de uma expressão do inconsciente, podem servir como um meio de organizar memórias, elaborar conflitos e preparar o sonhador para a vida desperta.

Texto: Freud dizia que um sonho é como um fogo de artifício: "leva horas para ser preparado, mas se consome em um momento". Utilizou também usava a expressão "umbigo do sonho" para representar o que há nele de desconhecido, inapreensível, sendo uma "via régia" para o inconsciente. Ao sonhar, limites como os da lei da física, a exemplo da lei da gravidade, dão lugar à lei anárquica da da fantasia inconsciente, em seu aspecto jubiloso, mas também no que possui de mais assustador.


Ao mesmo tempo, o sonho possui diversas funções para a vida desperta. No livro "O Oráculo da Noite", o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro fala do sonho como um organizador de memórias, atuando ainda como um otimizador cognitivo, uma espécie de simulador virtual que os seres humanos possuem à sua disposição (assim como outros animais). Um gato que sonha com uma perseguição a um rato, por exemplo, pode se tornar mais ágil quando a situação, de fato, ocorrer. Da mesma forma, o sonho nos seres humanos poderiam funcionar como anteparos para situações da vida em vigília.


Biologicamente, portanto, o sono e o sonho funcionam como uma espécie de faxina geral da casa, tentando pôr no lugar o que ficou pelos cantos, tornando o ambiente mais limpo e arejado para o dia que irá seguir. Não dormir ou dormir mal representa uma toxicidade, tornando o sujeito muito mais suscetível ao stress.


Desejo e enigma


Os sonhos costumam ser vistos como enigmas, em que o próprio sonhador não conhece bem a resposta. Um construtor que, após erguer um labirinto, perde-se nele e não sabe mais por onde entrar ou sair.  Freud também pensou o sonho como um "guardião do sono". Ou seja, o sonho possui a função de nos manter dormindo. Uma elaboração de fantasias, estímulos e desejos como forma de aplacá-los, via sonho.  Nesse sentido, o despertar de um pesadelo ou alguma intensidade vivida oniricamente que nos acorda seria o momento em que o guardião não conseguiu cumprir a sua função.


Perturbações reais no cenário do sonhador podem ser incluídos na narrativa onírica. Há o exemplo em "A Interpretação dos Sonhos" (livro de Freud, datado em 1900) do pai que dorme ao lado do caixão do filho e sonha com ele vindo em sua direção em chamas: "Pai, não vê que estou ardendo?". Ao despertar, percebe que uma vela estava começando a pôr o quarto em chamas. Aqui, o filósofo Slavoj Zizek vai problematizar a ideia freudiana do sonho como guardião do sono, ao comentar que, nesse exemplo, o pai foge para a realidade (despertando), uma vez que o sonho apontava para um real traumático e insuportável, o da culpa sentida pela morte do filho.


Nesse sentido, para Zizek, o sonho não é guardião do sono. É a realidade que salva o sujeito de viver sonhando, ou seja, sendo queimado pelo inconsciente, sem conseguir sair daí. O despertar, portanto, seria não uma falha do guardião, mas uma porta de saída do labirinto, o que pode nos fazer pensar nos filmes do personagem Freddy Krueger ("Whatever you do... don't fall asleep) ou mesmo nos pesadelos das crianças que despertam de madrugada e correm para o quarto dos pais.


Olhos para dentro

Sonhar é como ter os olhos voltados para dentro, vasculhando memórias (principalmente as do dia anterior, o chamado 'resto diurno', mas também marcas intensas que insistem em se inscrever, a exemplo dos traumas e do estresse pós-traumático), desejos frustrados pelas leis da realidade, ansiedades e ameaças fantasiadas.


Sou particularmente favorável à hipótese de que sonhamos o tempo inteiro. A única diferença é que, dormindo, o sonho, que parecia ser coadjuvante da nossa história, assume o personagem que ele realmente é, o de protagonista da nossa vida. Wilfred Bion pensava os sonhos como uma forma de elaboração. Um exemplo mais didático é com a digestão: o sonho seria como o sistema digestivo das emoções e experiências, transformando-as em palavras, associações, pensamentos. A agonia, o terror, portanto, é justamente aquilo que não pode ser sonhado.


Caminhando por esse sentido, autores como Thomas Ogden diferenciam os terrores noturnos dos pesadelos. Enquanto os pesadelos são sonhos que despertam medo, mas que possuem algum grau de elaboração onírica, os terrores noturnos são "impressões sensórias brutas relacionadas à experiência emocional". Isso ajuda um pouco a refletirmos sobre os terrores tão comuns em pacientes com stress pós-traumático, em que a situação aterrorizante pode ser constantemente revivenciada ao dormir. Para Ogden, esses pacientes buscam "ajuda para sonharem sua experiência não sonhada e insonhável" (em "Esta Arte da Psicanálise").  

Sonhos habitados


O sonho é, portanto, um produto da biografia do sonhador. Dessa forma, interpretações universais não são possíveis. Não existiria um significado único, por exemplo, para sonhar com um determinado tipo de animal ou um determinado tipo de situação. No contexto clínico, o relato de um sonho acaba funcionando mais como um instigador de associações, ou seja, o que vem à mente a partir do sonho, da experiência do sonho, dos elementos que surgiram nele.


De tal modo que a ideia de interpretação não deve ser de pacificar a mente do sonhador, mas justamente de mantê-la ainda mais curiosa sobre seu próprio mundo interno, produzindo, portanto, novos sonhos, ao invés de respostas que fornecem a ilusão de conquista de si. É mais como um navegador que, do barco, avista uma terra que lhe é estranha. Uma possibilidade é simplesmente dar um nome àquele pedaço e seguir em frente para a rota previsível. Outra possibilidade é direcionar o leme para o desconhecido, um pouco no sentido do que Bion chamava de "capacidade negativa": a capacidade de tolerar a dúvida e a incerteza, sem pressa para transformar em um frágil conhecimento.


Afinal de contas, tratar o desconhecido como um já conhecido é justamente o que poderíamos chamar de sintomas. A expectativa da morte, por exemplo, talvez resulte em tanta ansiedade e medo não pelo que há nela de tão desconhecido, mas em razão do que achamos que a conhecemos. Acreditamos, por exemplo, que a morte será uma grande solidão ou um grande esquecimento, parecido com nosso tão conhecido abandono, constituinte da vida humana. Para outros, a morte talvez seja como uma dor, só que incessantemente reproduzida, como uma cãibra infinita. Os mais catastróficos chegam a pensar que morrer é ficar preso em um caixão, mudo, com o grito abafado pela terra. Aceitamos todas as hipóteses, incluindo as mais absurdas, menos uma: a de que simplesmente não podermos conhecer.


Inapreensível


Freud também usava a expressão "umbigo do sonho" para representar o que há nele de desconhecido, inapreensível. Sonhando, os seres que nos habitam (ou nossas fantasias, se preferir) começam a dançar, criando cenas desconcertantes, como expressa em verso a poeta polonesa Wislawa Szymborska: "Meus sonhos — nem eles são como deveriam, habitados". Assim, com os sonhos possuímos uma relação de estranha intimidade. Uma intimidade tão grande e intensa, talvez, que parece não nos pertencer, como se falasse de um outro mundo, assim como se chegarmos perto demais de qualquer objeto, não conseguimos mais enxergar e tudo fica escuro.


Ainda desse modo, o espaço analítico deve propiciar ao analisando um ambiente sonhante, ou seja, um espaço em que ele se sinta livre para associar, deslizar em seus significantes com liberdade, sem temer julgamentos. Da mesma forma, o analista deve se permitir uma escuta sonhante, que não fique presa à necessidade de compreensão, pois essa pode obstruir o alcance da experiência analítica.

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