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Silêncio: espaço, gesto e música

Atualizado: 30 de out. de 2023


"Still Life" de Edward Wadsworth (1926)
"Still Life" de Edward Wadsworth (1926)
Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, falo do silêncio como um lugar onde o paciente pode se conectar com suas fantasias e experiências inconscientes.

Para além da psicanálise, o silêncio surge às vezes relacionado ao sagrado e à espiritualidade. Há ainda o silêncio da censura e o silenciamento de determinadas vozes na vida social. Há ainda o silêncio que diz algo sobre uma construção de intimidade, bem como aquele que é expressão de mágoas e ressentimentos. No corpo, o silêncio dos órgãos em funcionamento ou o silêncio de quietude e contemplação.

Já dentro do contexto analítico, o silêncio surge como um importante e diverso elemento da experiência. Seja por parte do paciente ou por parte do analista, possuem significações que são variadas. A capacidade de tolerá-lo é também a capacidade de viver o que agita o psiquismo. Essa capacidade deve estar desenvolvida no analista, o que implica estudos, supervisões e, principalmente, sua própria análise pessoal. Tolerar o perturbador não é se tornar-se alguém frio e imperturbável, mas conviver com tais turbulências da mente sem uma intensa necessidade de espantá-los, ao menos em algum nível.


A ideia do silêncio na psicanálise atravessa uma ideia estereotipada do analista como alguém que passa a sessão toda sem dizer nada. Entretanto, para muitos pacientes, pontuações e intervenções também são necessárias, para sinalizar ao analisando que existe uma presença viva, ativa. Assim, deve-se ter o cuidado para que o silêncio do analista nas sessões não seja uma estratégia de saber-poder, rigidez e indiferença.


Tecnicamente, o silêncio do analista também pode funcionar como um estímulo para que o paciente permaneça em livre associação. Ele também aparece nas sessões sob a forma de resistência, um obstáculo à livre associação das palavras e das fantasias, o que pode requerer intervenções no sentido de abrir caminho ao pulsional.

Silêncio como espaço

Piera Aulagnier sugere que o silêncio do analista também funciona como uma fonte de angústia em pacientes neuróticos. Não à toa, uma vez que ele também ecoa o mundo de fantasias internas de cada um. A evitação do silêncio, por parte do paciente, pode representar o medo (inconsciente) de que o analista entre nesse mundo. A escuta, portanto, envolve escutar não apenas aquilo que é dito, mas também o modo como o paciente lida com esses buracos de palavras.

O silêncio é um empuxo a uma conexão de intimidade e no contexto analítico, isso pode despertar angustias. Uma menção do filósofo Georges Bataille também poderia se aplicar a essa questão: "Alguns preferem a morte ao contato com uma serpente, mesmo sendo ela inofensiva". O silêncio é também um lugar de "não saber", como na conhecida vergonha de "não saber o que dizer" ou mesmo o receio dos pacientes em não terem o que falar. Todas essas questões estão implicadas no funcionamento mental do paciente e no estabelecimento do vínculo entre a dupla na análise.

O respeito ao silêncio também indica demarcá-lo como um espaço que funciona como um nascedouro de novas experiências, diferente da repetição sintomática. Dessa forma, uma análise é também uma escuta do silêncio que mora embaixo do que é dito.

Silêncio como gesto

Para o psicanalista J.D. Nasio, o silêncio é a melhor representação do que seria o inconsciente. Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas consegue simplificar isso em poucas palavras: "O silêncio é a gente mesmo demais”. Nessa medida, falar verborragicamente pode ser uma estratégia defensiva para não se escutar, o que muitas vezes precisa ser pontuado na sessão.

É preciso tempo (o que pode variar muito) para que analista e paciente percebam o silêncio não mais como um problema a ser superado, mas uma possibilidade rica de exploração do mundo subjetivo. Por parte de quem escuta, oferecer o silêncio é um gesto que torna possível que as palavras se expanda para outros universos mentais. Nesse sentido, abafá-lo também pode ser um modo paradoxal de emudecimento.

Para o antropólogo David Le Breton, o silêncio é a respiração entre as palavras, uma dobra que permite que os significados possam circular. Há emudecimentos na sessão que precedem a estruturação de novos pensamentos e há outros que o interrompem. O silêncio, no contexto psicanalítico, não possui um sentido imediatamente negativo, no sentido de algo que está faltando, mas é um modo de expressão da vida subjetiva.

Nesse sentido, o objetivo de uma análise não é de dar nome a tudo que acontece, pois há silêncios não condicionados às palavras, silêncios que não são o oposto do falar, lembrando aqui que linguagem não se resume ao que temos para dizer. Para falar sobre o silêncio, por exemplo, Lacan vai utilizar uma imagem paradoxal, a da obra O Grito de Edvard Munch. Uma pintura sobre um grito em que o que se impera é o completo silêncio.

É importante que o paciente sinta que o ato de falar não é uma obrigação e que o silêncio também é um espaço potencial de introspecção, como indicou o psicanalista Thomas Ogden. De acordo com Cristina Schwarz e Simone Moschen: "A voz não se confunde com o som; não está no registro do sonoro, e sim no registro do silêncio. Não é algo do qual nos servimos; ela é, justamente, aquilo que não se pode dizer – e, por isso, impele a que se digam tantas outras coisas".


Silêncio como música

O silêncio também é, muitas vezes, uma música sem palavras, comunicando o que não tem nome ou o que não pode ser dito. A escuta do que não é dito é uma boa parte do que acontece em uma sessão analítica. Há sempre um silêncio que habita as palavras e frases. Um espaço interno que não é preenchido por nomes ou adjetivos. As palavras não fecham esse buraco, talvez apenas forneça um contorno precário. Ouvir o silêncio é uma forma de escavar esse buraco. Tarefa paradoxal e perturbadora, entretanto, já que o que se escuta no silêncio não são palavras.


Não deixa de ser um jogo de esconde-esconde, um contínuo calar e falar: "Por debaixo é tudo escuro, é tudo dispersão, é insondavelmente profundo; mas, de quando em quando, subimos à superfície e é através disso que somos vistos" (Virginia Woolf em Ao Farol). Estar em silêncio juntos também é uma possibilidade de ser tocado pelo silêncio do outro.

No contexto dos atendimentos virtuais, o silêncio muitas vezes é confundido com interrupções na conexão, podendo induzir a dupla uma maior verborragia e necessidade de interações para sinalizar continuidade e presença. Sobre isso, Christian Dunker sinaliza que "é preciso reaprender a ficar em silêncio e evitar, calculadamente, a parceria imaginária que o meio digital nos habitou, ou seja, responder de maneira cada vez mais acelerada".


Mesmo quando falamos, persiste um silêncio que talvez nunca deixe de existir. Do mesmo modo, ficar em silêncio também é uma forma de ouvir o ruído feito por palavras e experiências sem nome que se agitam de dentro. O caminho entre o silêncio e a palavra passa, inevitavelmente, pelo mundo das fantasias e da nossa história singular.

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