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Pulsão de vida, pulsão de morte

Atualizado: 30 de out. de 2023


"Sem título" - Egon Schiele (1918)
Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, trabalho a ideia de que o conservadorismo pulsional e a compulsão à repetição são fenômenos psíquicos complexos que têm um impacto significativo em nossas vida: eles podem nos levar a repetir padrões de comportamento destrutivos, prejudicando nossas relações de alteridade.

Texto: No conto "Natal na Barca", a escritora Lygia Fagundes Telles fala de uma embarcação com quatro passageiros - um velho, uma mulher com uma criança e a narradora - navegando ao redor do silêncio: "Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal". Em um momento, a narradora, apesar de preferir o silêncio, se aproxima da passageira, escutando sua história e drama: "Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los". Todo o conto parece insistir a todo momento na ideia de luta entre vida e morte. O próprio rio é gelado à noite, mas "quente e verde" ao dia.


A dualidade entre pulsão de vida e de morte surge pela primeira vez na obra de Freud no texto "Além do princípio do prazer" de 1920. Em um nível histórico, também se relaciona com a Primeira Guerra Mundial. Eros (pulsão de vida) e Tânatos (pulsão de morte) aparecem como um par, um sempre remetendo de algum modo ao outro, mas às vezes atuando de forma separada.


Essas idéias de Freud estão articuladas a uma inquietação sua, derivada tanto da sua experiência clínica como da sua visão diante da história humana: o ser humano não busca prazer o tempo todo, algo mais parece estar presente. O conceito de pulsão de morte está dentro dessa paisagem. Com essa virada teórica, Freud complexificou o aparelho psíquico. O que habita o sujeito não é a busca por prazer, mas a satisfação das pulsões, o que não é igual.


A divisão entre pulsão de vida e de morte substitui outra divisão entre pulsões sexuais e pulsões de auto-conservação. Freud nomeava as pulsões de vida e de morte como "forças primevas", no sentido de que atuam como pulsões-matrizes na organização psíquica. Representam classes de pulsões que se intercambiam e se influenciam. Em psicanálise, pulsões podem ser entendidas como forças, um conceito fronteiriço entre o corpo e a psique.

Na visão freudiana da dualidade pulsão de vida e de morte, a primeira busca o estabelecimento de unidades maiores, bem como sua preservação, enquanto a pulsão de morte destina-se a desfazer conexões, a partir de um retorno a um estado inorgânico. A pulsão de morte pode ser entendida, assim, como um empuxo ao zero, à ausência, ao silêncio, enquanto a pulsão de vida perturba essa tendência à morte através da criação. Comumente, portanto, na teorização psicanalítica a pulsão de vida possui como característica a ligação, enquanto a pulsão de morte é desarticuladora.

Nessa compreensão, a vida seria uma perturbação da morte e não o contrário. A inércia enquanto ponto primário ao qual a repetição visa um retorno fantasioso, enquanto a criatividade e a abertura ao novo requer um trabalho do desejo enquanto possibilidade de criação. Cabe ainda enfatizar que a psicanálise não é ou não deve ser uma receita do que é uma configuração pulsional dita normal, pois não há normal no inconsciente, mas laços possíveis. A relação entre pulsão de vida e de morte em cada sujeito se dá de forma radicalmente singular.

Eros e Tânatos entre fusões e desfusões

A pulsão de morte, na sua articulação com a ideia de repetição, é paisagem de fundo de uma pergunta comum no ambiente analítico: "Por que não consigo deixar de fazer aquilo que me traz sofrimento?"". O psicanalista Leopoldo Fulgêncio acrescenta que, nessa compreensão freudiana de pulsão de morte, "esse impulso seria, na verdade, a própria essência daquilo que é pulsional". Daí a sua conexão com a repetição, uma vez que ela também procura eliminar uma excitação. Em razão dessas questões, alguns psicanalistas como Jean Laplanche trabalham com a ideia de que a pulsão de morte é, na verdade, a pulsão em estado puro, sem representação.

Para Léa Silveira, enquanto as pulsões de vida mobilizam trabalho, a pulsão de morte "exige que tal trabalho seja desfeito ou que não seja sequer iniciado". As revivências traumáticas são exemplos da força da pulsão de morte. De um modo geral, a situação traumática costuma ser revivida constantemente pelo sujeito, principalmente através de sonhos e pesadelos. Essa repetição do traumático estaria ligada a uma pressão da pulsão de morte em retornar a um estado anterior, pré-traumática, "um estado em que o aparelho psíquico desconhecia a energia que agora se expressa repetidas vezes". Ou seja, na pressão para encontrar o estado anterior, a vivência traumática se repete, por ainda não conseguir encontrar conexões representacionais que possam dar um novo destino à experiência.

É importante afastar-se, portanto, de uma concepção moralista e pejorativa da ideia de pulsão de morte como sendo uma simples busca pelo fim. Christian Dunker chama atenção para o fato de que a pulsão de morte também pode se apoiar em soluções criativas para o sujeito, não apenas destrutivas. O psicanalista reforça ainda que o conceito não deve ser simplificado como agressividade, violência ou mortificação, pois sua compreensão metapsicológica é muito mais densa e complexa. A fusão e a desfusão entre as pulsões são formas de articulação psíquica, implicadas nos impasses e soluções subjetivas.

Apesar de ser formulado apenas em 1920, a ideia por trás da pulsão de morte já aparecia, mesmo que por outros vértices, em outras reflexões de Freud, através, por exemplo, do Nirvana, princípio da constância, da inércia, homeostase, entre outros. Foi um conceito utilizado para pensar questões como a resistência terapêutica, a compulsão à repetição e o trauma. Freud afirmou ainda que tal pulsão opera internamente de forma silenciosa (mas não menos intensa), tornando-se ruidosa apenas quando passa para o mundo exterior.

Desse modo, o conceito de pulsão de morte tenta dar conta de uma perturbação a nível da relação do sujeito consigo mesmo, com aquilo que desconhece, mas que está presente: "Não se trata de uma antítese entre uma teoria pessimista da vida e outra otimista. Somente pela ação concorrente ou mutuamente oposta dos dois instintos primevos – Eros e o instinto de morte -, e nunca por um ou outro sozinho, podemos explicar a rica multiplicidade dos fenômenos da vida", escreve Freud em "Análise Terminável e Interminável" de 1937, um dos seus últimos textos.

Penso que a expressão que melhor traduz a pulsão de morte não é "desejo de morrer", mas sim um movimento psíquico tendendo ao desinvestimento, desarticulações. A pulsão de morte, portanto, expressa a característica conservadora das pulsões, indicando as reflexões de Lacan sobre o assunto, de que toda pulsão é, virtualmente, uma pulsão de morte, em razão do seu princípio conservador, de retorno.

Para Roberto Ceccarelli, "o conservadorismo pulsional, a compulsão à repetição, faz de nossa história um eterno (re)começo". O psicanalista J.D. Nasio lembra que "a exigência de repetir o passado é mais forte do que a exigência de buscar no futuro o acontecimento prazeroso". Recordemos que Freud falava da repetição como algo demoníaco, que parecia tomar as rédeas do desejo do sujeito. Assim, "a compulsão à repetição seria o desejo de retornar ao passado e rematar, sem entraves e desvios, a ação que se revelou impossível [...]", afirma Nasio, remetendo a uma ideia de conservadorismo pulsional que busca que se repete em busca de uma solução final.

O que está para além do princípio prazer, portanto, é justamente a compulsão pela solução do traumático. Nasio também lança mão da psicanalista Françoise Dolto ao falar que o que a pulsão de morte busca não é a morte do sujeito, mas a morte do desejo, o zero nirvânico, uma espécie de paraíso silencioso e sem tensão.

A pulsão de morte funcionando sozinha, ou seja, desencaixada da pulsão de vida, possui efeitos contra o próprio psiquismo do sujeito e suas relações de alteridade: "Quando acionada de modo desligado da pulsão de vida, sua descarga será sem nenhuma consideração para com a alteridade ou para com o próprio eu […]", de acordo com Miriam Debieux e Diego Penha. Desse modo, quando a pulsão de morte tiraniza a pulsão de vida, de forma desfusionada, o que resta é a busca repetitiva por uma tensão zerificada.


Ser ou não-ser

José Gutiérrez-Terrazas lembra que Freud utilizou o conceito de pulsão de morte, inicialmente, de uma forma especulativa. Trata-se de uma das ideias mais controversas da psicanálise, que possui psicanalistas importantes que rejeitaram o conceito em sua teorização, como Donald Winnicott, ou que deram ênfase ao componente da destrutividade, como Melanie Klein.


Assim, vimos que o conceito de pulsão de morte é um dos mais complexos e polêmicos dentro do arcabouço teórico proposto por Freud e, posteriormente, discutido por diversos psicanalistas. Como nos lembra o conto de Lygia Fagundes Telles, as ideias de vida e de morte continuam habitando nossas nossas reflexões de forma singular e radical.

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