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Psicossomática e turbulências

Atualizado: 26 de jan.


"Little Tree" de Egon Schiele (1912)

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, reforço a ideia de que a expressão "quadro psicossomático", por si, é problemática, pois sugere uma separação entre corpo e psiquismo, que na verdade estão sempre em interação.

Costumo entender que a expressão "quadro psicossomático" leva a vários erros e confusões. O problema do fator emocional afetando o corpo é justamente a separação, ou seja, a dificuldade de se integrar o psicossoma (soma significa corpo). As "explosões psicossomáticas", nesse sentido, talvez sejam justamente as tempestades não-psicossomáticas, momentos em que corpo e psique sofrem um corte.


É preciso ter o cuidado, entretanto, em não transformar a psicossomática em uma psicologização, reduzindo doenças complexas a questões apenas psicológicas, o que seria um outro tipo de fragmentação. E fragmentação é justamente o que menos iríamos querer para um paciente que traz sofrimentos que convocam corpo e psiquismo em conjunto.


O corpo sempre esteve implicado na psicanálise desde o seu começo, através principalmente do conceito de pulsão, indicando uma experiência de fronteira entre soma e psique. De início, é importante fazer oposição a discursos reducionistas que reduzem a causalidade das patologias humanas, como dizer que um câncer é produto de mágoas guardadas, o que serve apenas para culpabilizar o sujeito por um fenômeno amplo. O campo da psicossomática mais sério e comprometido, debruça-se, na verdade, sobre como dimensões subjetivas podem interferir no funcionamento orgânico de uma maneira patológica, sem desconsiderar os vários fatores envolvidos.


Estamos aqui tratando do tema da psicossomática a partir do viés da psicopatologia, portanto, diferenciando-se da compreensão, por exemplo de integração psicossomática, mais relacionado às ideias do psicanalista Donald Winnicott.


A atenção da psicanálise em relação aos distúrbios psicossomáticos se deu a partir da amplificação das reflexões e estudos na área, incluindo a necessidade de refletir sobre a técnica psicanalítica em pacientes que apresentam alguns sintomas que se distinguem da neurose clássica. Nesse ponto, é importante fazer uma distinção entre histeria (com as conhecidas conversões que produzem paralisias, anestesias etc.) e psicossomatização. Trata-se de experiências diferentes, mesmo que ambas coloquem o corpo em cena. Enquanto na histeria o conflito dispara o mecanismo do recalque (há presença de simbolização), o sintoma psicossomático é feito justamente do oposto, aquilo que não é pensado, representado, mas diretamente vivido no corpo, sem passar pela mediação psíquica. Além disso, diferente da histeria, há na psicossomática um dano biológico em nível dos tecidos, órgãos, o que é identificável em exames médicos.


Não à toa e não raramente, os pacientes que apresentam questões psicossomáticas possuem até noção de que situações e experiências de vida produzem reações corporais, entretanto, não há produção de uma história sobre esse sintoma. Quando solicitado para explicar melhor sobre, é comum utilizar outros termos que não historicizam, no sentido aqui de que não contam uma história sobre o sujeito, sua biografia, suas relações e percalços, o que é diferente de falar que possui reações corporais quando está estressado ou ansioso.


Há vivência, mas uma vivência cortante, pois não mediada pela palavra, mais parecido com um alimento que não é bem mastigado, então atravessa o corpo de um modo que o machuca. Por palavra aqui, na verdade, me remeto à circulação da experiência em uma cadeia simbólica. Alguém que é tomado por uma intensa ansiedade nas vésperas de uma prova, por exemplo, pode integrar essa emoção em articulação à sua história de vida, em conexão com outras experiências ansiosas que não tem relação direta com a prova, narrativizando inconscientemente essa vivência. Caso não haja esse tipo de elaboração mediada, o sujeito pode ficar mais propenso às eclosões psicossomáticas (como problemas gastrointestinais decorrentes da intensa ansiedade), pois a tensão não encontrou abrigo dentro do psiquismo, sendo vivida então no Real do corpo.


Outro exemplo metafórico é o do curto-circuito. Como já se sabe, um curto-circuito acontece quando um determinado aparelho não é capaz de suportar a tensão elétrica. A energia se dissipa, causando explosões, faíscas. No aspecto psicossomático, a mente do sujeito pode ser compreendida como esse aparelho (um continente, para utilizar uma terminologia do psicanalista Bion), enquanto que a tensão é o conteúdo. Quando a mente (continente) não consegue abrigar o conteúdo, o corpo acaba sendo o alvo de uma tensão errante. Por isso, psicanalistas que estudam o tema, como Joyce McDougall, costumam afirmar que o sintoma psicossomático não significa nada, ele simplesmente é uma reação (a algo que superou a capacidade do circuito psíquico).


Assim, a associação que o sujeito na psicossomática faz tem mais relação com a contiguidade/vizinhança de fatos ("Estava ansioso e logo fiquei muito mal e vomitei, então deve ter aí alguma relação") do que a uma associação de experiências com outras experiências encadeadas em termos de significação. A explosão no corpo possui "função de ato, descarga", segundo Joyce McDougall, não sendo nem uma comunicação (neurose) nem uma restituição (psicose).


No sintoma neurótico, há simbolização de conflitos pulsionais, enquanto que na psicossomática a pulsão não passa por essa mesma mediação. O conflito, desse modo, colide no corpo de forma direta, através de descarga. Nesse entendimento, mesmo um sujeito de estrutura majoritariamente neurótica pode apresentar sintomas psicossomáticos, relacionados a experiências não articuladas. Nesse sentido, não creio ser válido afirmar que o paciente com sintomas psicossomáticos apresenta sempre, a nível global do sujeito, dificuldades de fantasiar e simbolizar (alexitimia), mas sim que determinadas experiências e vivências encontram-se "não subjetivadas", tornando-o mais suscetível às descargas corporais.


É importante aqui distinguir subjetivar de culpabilizar. Muitas vezes, o discurso sobre a psicossomática acaba sendo culpabilizante, ao atribuir ao sujeito um suposto desejo de adoecer ou mesmo incapacidade de não adoecer. Como estamos vendo, entretanto, trata-se de um assunto muito mais complexo, em termos de estrutura e experiências arcaicas, inconscientes. Subjetivar, portanto, é resgatar a dimensão da singularidade, ou seja, as histórias que tornam aquele sujeito absolutamente único e incopiável.


Além disso, o sintoma psicossomático pode ser compreendido não como um déficit/falta, mas como uma defesa psíquica. Nesse entendimento, o sintoma psicossomático seria a forma que o sujeito encontrou de proteger a sua psique, mas ao invés do recalque do sintoma neurótico (ligado à repressão a nível do desejo), o que ocorre é a nível da própria sobrevivência psíquica (uma luta pela sobrevivência).


Segundo Joyce McDougall, o que torna uma tensão tão intolerável a ponto do sujeito não conseguir algum abrigo para ela em seu psiquismo, transformando-a uma errante que colide no corpo, é o receio de perda da identidade. Podemos comparar com as cenas comuns em filmes de perseguições aéreas, em que o piloto se ejeta do caça para sobreviver, sendo o piloto a tensão que é experienciada. Entretanto, não é possível ejetar uma tensão ou fazê-la desaparecer, apenas transformá-la (através, por exemplo, da articulação com cadeias simbólicas).


Uma das consequências possíveis dessa tensão não transformada é a colisão no corpo, em que é necessário que o corpo dê conta sozinho de uma tensão desarticulada. Dessa forma, a tensão é vivida como "substâncias tóxicas contra as quais o corpo deve reagir".

Assim, o sintoma psicossomático é como um "capítulo em branco” de uma obra: faz parte do livro, consome suas páginas, uma presença como qualquer outra. Entretanto, marcada justamente por não haver narrativa. Assim, há presença e a presença sempre demanda algum lugar. No caso do sintoma psicossomático, esse lugar encontrado é o do próprio corpo. Encontrou abrigo no corpo, pois foi expulso do psiquismo. Por não haver narrativa, também não consegue uma articulação com os demais capítulos do livro.


Em um trecho do livro "Sobre os Ossos dos Mortos", a personagem de Olga Tokarczuk, em um momento, aborda a nossa estranha relação com o corpo de forma sarcástica: “Temos este corpo, esta bagagem que só causa problemas, e, de fato, não sabemos nada sobre ele. Precisamos de diversas ferramentas para nos informar sobre os processos mais simples. Não é ridículo que, da última vez que o médico quis verificar o que estava acontecendo com meu estômago, me mandou fazer uma endoscopia? […] Os anjos, caso existam, morrem de rir de nós. É nisso que dá ganhar um corpo e não saber nada sobre ele”.


Joyce McDougall comenta que as manifestações psicossomáticas possuem uma história a ser reconstruída. As representações psíquicas, desse modo, podem vir a atuar como um anteparo de tensões, funcionando como uma espécie de pára-raio, evitando que uma tensão (gerado por um conflito ou uma angústia) seja vivido no próprio corpo via descarga, sem mediações.


Falar sobre o sintoma em psicanálise, na verdade, é falar sobre si, sobre a singularidade que compõe a história do sujeito, sua biografia entre desejos e identificações. Histórias funcionam como abrigos. As crianças pequenas sabem disso (mesmo que não saibam que sabem), fascinadas por histórias que, de algum modo, falam do que elas também sentem e vivem. No contexto psicanalítico, falar de si, em grande parte, não é exatamente lembrar da história, mas construir uma nova história, como alguém que constrói novos lugares para se habitar.

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