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Passado que não passa, mas que muda

Atualizado: 15 de jul. de 2021


"Newfields, New Hampshire" de Childe Hassam (1906)

Há uma ideia comum e errônea (por ser incompleta) que relaciona a psicanálise como uma espécie de busca pelo passado, um pouco como Indiana Jones indo atrás da sua arca perdida. No texto A Dinâmica da Transferência (1912), Freud afirma que: "No processo de procurar a libido que fugira do consciente do paciente, penetramos no reino do inconsciente". Desse modo, podemos interpretar que a busca da psicanálise não é no passado, mas sim no inconsciente, marcado pela atemporalidade.


O infantil psicanalítico é, assim, um infantil reatualizado. Um infantil que se presentifica. No contexto da clínica, quando se escuta o paciente abordar sobre o que ocorreu ao longo da sua semana, por exemplo, trata-se de estar receptivo ao que ocorre naquele exato momento do encontro. O passado psicanalítico é um tempo que não fica para trás. Por essa reatualização, Bion insistia que "a observação psicanalítica não concerne nem ao que ocorreu nem ao que vai ocorrer, mas ao que está ocorrendo" (em Notas sobre Memória e Desejo).


Passado que não passa


Muitas vezes é difícil falar de acontecimentos que são dolorosos, por exemplo. Afinal, falar sobre a dor é, em algum aspecto, revivê-la, mas também, dentro de um contexto analítico, uma possibilidade de transformá-la. Há também uma espécie de ilusão mágica de que não falar sobre o que ocorreu é uma forma de fazer com que o afeto fique adormecido. Autores posteriores a Freud como Bion e Ogden consideram ainda que existem experiências vividas que sequer foram pensadas, ou seja, não foram absorvidas pelo psiquismo, atuando como uma espécie de corpo estranho.


O inconsciente põe em xeque qualquer ideia de linearidade em nosso psiquismo. Na obra Memória e Temporalidade - Sobre o Infantil em Psicanálise, o autor Bernardo Tanis fala em uma "coexistência temporal do presente e do passado, na qual o presente deixa de ser presente na medida em que é vivido e experienciado a partir de outro lugar [...]". Já Bruce Fink alerta que "o inconsciente não pode esquecer [...] ele preserva no presente o que o afetou no passado, segurando cada e todo o elemento eternamente, permanecendo marcado por todos eles para sempre".


No conto "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", o escritor argentino Jorge Luis Borges descreve algumas maneiras interessantes de se compreender a passagem do tempo, através das escolas existentes em um mundo fictício chamado Tlön. Uma delas nega a ideia de tempo, afirmando que o presente é indefinido, o futuro sem realidade e o passado "não tem realidade senão como lembrança presente".


O passado cambiante


Em O Estrangeiro de Albert Camus há um trecho que diz: "Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldade passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar". O olhar para trás, portanto, nunca é estático. É possível formar novos arranjos dessa narrativa em formas e conteúdos diversos. Nesse sentido, o que muda não é o fato concreto ocorrido, mas quem se transforma é o sujeito, que pode ampliar os seus vértices, alterando, inclusive, o modo como aquela lembrança ou memória o afeta.


Enquanto construção, o passado é modificável na medida em que, de algum modo, falamos sobre ele, construímos novas combinações. Fatos, entretanto, não são passíveis de mudança, mas sim o modo como narramos o que nos aconteceu. O passado morto parece, então, aquele em que não conseguimos produzir novas narrativas. Uma espécie de passado que assombra, no sentido de repetição e retorno constante. Assim, reforço que não é exatamente daquilo que já aconteceu que a psicanálise tanto se interessa, no sentido da factualidade, mas sim do que se reatualiza constantemente, do que se presentifica e retorna. Não à toa, de uma maneira geral a psicanálise é um dos campos conhecimentos mais críticos em relação à ideia de progresso, pois o mesmo dá a entender uma espécie de desenvolvimento em que o que ficou para trás é diluído pelo presente.


Passado que repete


Sobre a compulsão à repetição, o psicanalista J.D. Nasio escreve que "a exigência de repetir o passado é mais forte do que a exigência de buscar no futuro o acontecimento prazeroso". Continua em outro trecho de sua obra que introduz Freud, Ferenczi, Lacan e outros autores: "O desejo ativo do passado, mesmo que o passado tenha sido ruim para o eu, explica-se por essa compulsão a retomar o que não foi concluído, com vontade de completá-lo". Ou seja, a repetição envolve uma espécie de tentativa de reviver o que não foi bem vivido, dessa vez de uma forma completa e satisfatória. Quando isso não ocorre (e geralmente não ocorre, uma vez que estamos falando aqui de um desejo ilusório de completude), o ciclo de repetição retoma suas rédeas .


O ser humano, portanto, está muitas vezes sujeito a repetir insatisfações, pois vai atrás justamente do que não está bem e do que lhe falta. Conforme J. D. Nasio apontou em "Como trabalha um psicanalista", o conceito de repetição em psicanálise teria mais relação com perseverança/insistência do que com reprodução.


O conceito psicanalítico de "a posteriori" também ajuda a pensar esse elo dinâmica entre passado-presente-futuro. Laplanche e Pontalis o definem da seguinte maneira: "Há experiências, impressões, traços mnésicos que são ulteriormente remodelados em função de experiências novas, do acesso a outro grau de desenvolvimento. Pode então ser-lhes conferida, além de um novo sentido, uma eficácia psíquica". Os acontecimentos do passado, portanto, não são controláveis, entretanto, é possível ressignificar experiências que já ocorreram. O passado, enquanto narrativa, pode ser reorganizado.


Laplanche e Pontalis sugerem ainda que "a remodelação a posteriori é acelerada pelo aparecimento de acontecimentos e de situações, ou por uma maturação orgânica, que vão permitir ao sujeito o acesso a um novo tipo de significações e a reelaboração das suas experiências anteriores". Sob esse ponto de vista, ao fazer associações diversas sobre o que nos ocorreu (associação de palavras que se ligam a associações de emoções, afetos e representações), estamos também inventando ou recriando o nosso passado. A fantasia e a imaginação costuram o tempo que nos escapa: ""[...] o passado, o presente e o futuro são como as contas de um colar entrelaçadas pelo desejo", escreveu Freud.


Referências:


Conto "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" de Jorge Luis Borges (1940)

Obra "O Estrangeiro" de Albert Camus (1942)

Texto "A Dinâmica da Transferência" de Sigmund Freud (1912)

Texto "Notas Sobre Memória e Desejo" de Wilfred Bion (1967)

Texto "Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade" de Sigmund Freud (1905)

Obra "Vocabulário de Psicanálise" de Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis (2001)

Obra "Memória e Temporalidade - Sobre o Infantil em Psicanálise" de Bernardo Tanis (1995)

Obra "O Sujeito Lacaniano - Entre Linguagem e o Gozo" de Bruce Fink

Obra "Introdução às Obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto e Lacan" de J.D. Nasio (1994)

Obra "Como Trabalha um Psicanalista" de J.D. Nasio (1999)











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