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Pandemia e a bússuola da angústia

Atualizado: 20 de out. de 2023


"The Disquieting Muses" de Giorgio de Chirico (1916)

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, abordoa pandemia como bússola para a angústia: a ruptura da continuidade do tempo, o estreitamento do psiquismo e o desalento são alguns dos fatores que contribuem para o aumento da angústia.

Texto: No livro "Angústia", publicado em 1936, Graciliano Ramos escreve: "Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba". Alguns acontecimentos não mudam só o que ainda vai ocorrer, mas também o que já ocorreu. É como uma virada do roteiro em finais de filmes: não é só o final que muda, mas também o começo, o entendimento do papel de cada personagem, a compreensão sobre como o imprevisível afetou os rumos da história. A pandemia parece trazer algo parecido, em que se borra não só o que irá acontecer no futuro, mas também como chegamos até aqui.


A nível social, há uma forte repressão para evitar esse tipo de questionamento, como se a pandemia não tivesse a ver com nossas relações de consumo e com a natureza, seja ela humana ou não. Substituindo o antigo normal, a imposição de um "novo normal", que no fim não passa de uma normalidade remendada. A nível do sujeito, borrar a subjetividade, a princípio, parece assustador, pois dificulta o acesso do sujeito aos alicerces que edificou e aos quais se agarra, mesmo que sejam frágeis (afinal, é o que tem na hora). Mas ao mesmo tempo, esquecer quem somos faz parte de um processo de transformação, senão fazer psicoterapia seria apenas entregar um relatório dos acontecimentos da semana. Parte do poder de uma análise se dá porque lá não precisamos nos aprisionar na perspectiva de quem achamos que somos, não porque existe uma "verdade por trás", mas justamente porque a verdade subjetiva é uma verdade inventada.


Tempo e continuidade


A pandemia parece ter deixado as pessoas com o que elas viveram no colo, tirando-as aquilo que elas queriam viver. E o que fazer com o vivido é uma pergunta inquietante, pois coloca o sujeito diante dos próprios fantasmas. À sua maneira, Clarice Lispector dizia que o que estruturava alguém não são os olhos, sua fala ou seus hobbies, mas a sua terceira perna: ou seja, o sujeito se coloca no mundo através de uma ficção. O sintoma na psicopatologia é como uma terceira perna: algo que o sujeito inventa para si porque acredita que só com essa terceira perna irá se equilibrar.


Paradoxalmente, o tempo na pandemia parece feito de uma substância pesada e escorregadia. Olhar para as horas costuma ser apenas uma outra maneira de olhar para si. O escritor Julián Fuks (filho de dois psicanalistas argentinos) descreve bem a experiência do tempo durante a pandemia, sob a perspectiva de um tempo que parece congelado e morto, repetitivo, similar ao vivido pelo personagem de Bill Murray no filme "Feitiço do Tempo" (1993), em que um mesmo dia se repete na vida do protagonista, como se estivesse preso a um presente que não passa: "O que se produzia era um inchaço do presente, como se seu vulto engordasse tanto que ocultasse o passado e bloqueasse a vista do futuro inteiro", escreve Fuks. Há, então, um passado como encoberto ou solapado, o presente inflado e o futuro radicalmente incerto.


A experiência de um tempo morto é uma característica que se aproxima da vivência depressiva e o vazio libidinal. Nesse ponto, é importante demarcar que a principal característica da depressão não é a tristeza, mas a despotencialização da produção de desejo, tendo como derivado disso a sensação de que nada mais é fonte de prazer ou que tal fonte ficou seca. Nesse aspecto, a mortificação do tempo no contexto da pandemia também pode produzir sintomas similares a estados de vazio, tendo como pano de fundo o desamparo e o sentimento do desalento. Dentro desse contexto, me parece que é possível pensarmos que o que suspende a continuidade do tempo é a mortificação do desejo e a palidez da vida da fantasia.


Em razão da necessidade de realizar medidas sanitárias para a contenção da propagação do vírus, a mais importante delas sendo o distanciamento social, muitas pessoas se viram, de um dia para o outro, confinadas ao seu espaço residencial, com grande parte dos planos para o futuro cancelados, exatamente no início do ano, época em que a esperança por dias e meses melhores costuma se acender.


Corporalmente, a angústia costuma ser sentida como um "nó na garganta" ou "aperto na garganta", mas as manifestações corporais são diversas. Podemos comparar essa sensação com um sentimento subjetivo de que o psiquismo torna-se estreito e labiríntico, em que o desejo e a fantasia são comprimidos (no sentido aqui de compressão). No contexto da pandemia, tal estreitamento psíquico pode ser vivido na medida em que a ameaça da doença, a ausência ou diminuição de contato social, a menor possibilidade de circulação pulsional entre os sujeitos, também são circunstâncias com grande potencial compressor.


É necessário deixar claro que vivenciar um aumento da angústia em situações como essa é algo, inclusive, esperado. Estar angustiado com uma ameaça mundial que nos coloca em situação de alerta e distanciamento está longe de ser uma patologia mental por si mesmo. Entretanto, o estreitamento psíquico, social e físico, junto com uma paisagem contemporânea de individualidade, tornam-se incrementos para o sofrimento do sujeito. Sofrer ou angustiar-se não indica que a pessoa está doente, mas sim que está viva.


Desalento e individualidade


A quarentena, principalmente para aqueles que estão em um isolamento mais rigoroso, tem o potencial de produzir um efeito que poderíamos chamar de desregulação nos processos de reciclagem do psiquismo. Podemos fazer uma comparação com o mecanismo de respiração: para respirarmos, precisamos estar em constante troca com o nosso meio circundante. Se permanecermos muito tempo em um local totalmente fechado, a qualidade dessa troca irá cair e o ar irá se tornar, aos poucos, mais tóxico. Não de uma forma diferente, o psiquismo também precisa estar em contato com o meio, como forma de reciclagem ou de "desintoxicação pulsional". Não à toa, ao viajar, conhecer um lugar novo, entrar em contato com o desconhecido, costuma haver um sentimento de purificação psíquica, no sentido de uma espécie de limpeza e de renovação da qualidade da experiência subjetiva.


A necessidade do distanciamento social, fundamental para que o vírus não se alastre e coloque mais pessoas em risco, impôs aos sujeitos uma nova realidade e, consequentemente, um novo impasse diante da mesma. Como produzir renovações psíquicas nesse tipo de paisagem? A expressão usada "furar a quarentena" também parece remeter a um desejo de furar a nossa própria "bolha psíquica".


A narrativa trazida no começo da pandemia de que "todos estamos no mesmo barco" logo cedeu e deu lugar à velha individualidade, em que cada um precisa produzir, à sua maneira e como pode, respostas aos riscos psíquicos e orgânicos vividos. Não à toa, existe uma conexão direta entre o aumento quase pandêmico das crises de pânico e de ansiedade (em psicanálise podem ser entendidas como crises de angústia) e modos de vida que se articulam com uma coletividade fragmentada em indivíduos isolados.


O psicanalista Joel Birman costuma utilizar a expressão "desalento", o que remete a uma experiência de sentir-se sem direcionamento, perdido e ao léu. Como Birman sinaliza, tal desamparo, vivido a nível social, como no contexto da pandemia, provoca uma hemorragia da angústia. A invisibilidade do vírus expõe aquilo que é sistematicamente ignorado, seja no âmbito do sujeito (a total codependência do corpo e do psiquismo diante de tudo que o rodeia, incluindo o que não controla) ou a nível social (as desigualdades que se desdobram em questões sociais, raciais, de gênero, entre outras). A possibilidade de ficar confinado é, ao mesmo tempo, um privilégio e uma forte situação estressora. Da mesma forma, quem não pôde (e mesmo quem não quis) manter isolamentos mais rígidos também ficam sujeitos às muitas incertezas da pandemia.


Nó da angústia


A pandemia e as medidas de contenção necessárias parecem ter o efeito de pôr em questionamento o nosso lugar no mundo, trazendo impasses angustiantes na referência do "quem seremos ou queremos ser", mas também do "quem fomos" e do que "desejamos para nós próprios e os outros ao redor". Para o filósofo alemão Kierkegaard, a angústia é uma vertigem da liberdade.


A angústia é outro nome para as notícias do real, quando o simbólico e o imaginário não dão conta. Em "Inibições, Sintoma e Angústia", texto de Freud, há uma mudança na compreensão freudiana sobre a angústia, passando a ser um sinal diante do perigo e não mais um produto residual do recalque.


Christian Dunker, considerando o Seminário de Lacan sobre o tema, mapeia algumas considerações sobre a angústia: como afeto que não mente, a angústia quando a falta falta e que a angústia não é sem objeto. No artigo "Desejo, remédio contra angústia", Sandra Edler também comenta a angústia na obra de Lacan: "Em sua ótica, a angústia irrompe no encontro do sujeito com o Real, encontro este que o paralisa em sua condição de sujeito desejante". Além disso, complementa que "quando se estreita a distância entre gozo e desejo a angústia surge como sinal, toque de alerta, sinalizando o aparecimento do objeto a no lugar onde não se esperava encontrar nada".


Enquanto afeto, a angústia não é inconsciente: "A angústia é algo de que o sujeito padece. Assim, não há afetos inconscientes. Os afetos estão à deriva. Além disso, o que é recalcado são os insistentes significantes que amarram os afetos", escreve Scheherazade Paes de Abreu.


No geral, a angústia é um afeto que indica que algo corre risco de desmoronamento e irrupção ou de erodir, como um sinal de perigo. Ao mesmo tempo, a angústia é valiosa no encontro analítico pois indica, então, pontos estruturais do sujeito diante do conflito. Opera, portanto, como uma espécie de bússola. Abafar a angústia como se tapa um buraco, portanto, pode ser apenas um outro modo de mantermos o nosso velho ou novo normal em funcionamento.


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