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Sombras da melancolia

Atualizado: 20 de out. de 2023


"Melancolia" de Antonio Dacosta (1942)

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, abordo a melancolia e seus elementos históricos e psicodinâmicos.

Conforme autores como Robert Burton, que em 1621 escreveu o livro "Anatomia da Melancolia" e, no Brasil, Moacyr Scliar, com o livro "Saturno nos Trópicos", a melancolia faz parte da história humana. Uma espécie de personagem sempre presente nos mais diversos tempos e acontecimentos. Em diversos sentidos, é encarado não como uma doença a nível individual, mas como uma forma de zeitgeist, uma textura do nosso tecido social.


A própria concepção de melancolia, em sua origem, é permeada de questões similares: "Era doença, a melancolia? Não havia consenso a respeito. De um lado estavam os adeptos do conceito galênico: melancolia é um distúrbio dos humores. [...] De outro lado, estavam aqueles que seguiam Aristóteles: melancolia é uma admirável condição da mente”, descreve Sclyar.


Em "O Demônio do Meio-Dia", o jornalista Andrew Solomon escreve sobre a depressão, partindo da sua experiência pessoal. No livro, o autor resgata as concepções filosóficas acerca da melancolia, que passam por Hipócrates, Galeno, Santo Agostinho, Bauedelaire e o próprio Freud, entre muitos outros.


Assim, como iremos sublinhar, Freud deu sua contribuição fundamental à história da melancolia, partindo de uma concepção psicodinâmica, aproximando-a da perda e dos processos de luto. Com o tempo, o termo depressão acabou substituindo a melancolia. Vejo nisso, no entanto, uma grande perda conceitual. Arrastar a melancolia para o entendimento de que é uma expressão arcaica e antiga que deve ser inutilizada é abrir mão não só uma boa parte dos estudos psicodinâmicos sobre a subjetividade, mas também uma grande parte da História humana.


Esse artigo descreve algumas diferenças entre depressão e melancolia, a partir da compreensão de diversos autores: o componente principal do narcisismo na melancolia; o depressivo que perde um objeto, enquanto o melancólico perde-se nele; o conflito entre ego e superego e na melancolia, enquanto que na depressão o conflito se dá entre o ego e o ideal de ego. Penso que tais distinções são importantes, no entanto, é necessário afastar-se de uma compreensão muito rígida, uma vez que melancolia e depressão também possuem estruturas comuns, principalmente em relação à perda.


E se a melancolia já chegou a possuir uma conotação romântica, de genialidade e de sensibilidade, hoje ela não encontra mais lugar: "A sociedade não está disposta a tolerar perturbações mentais, ainda que enalteçam o intelecto", afirma Sclyar. O antídoto da modernidade para a melancolia seria a atividade e o trabalho: "A mania que, na doença bipolar, representa a alternativa à depressão terá, na vida social, um significado equivalente". Um antídoto falso, acrescentaria, pois melancolia e mania são faces de uma mesma moeda, como já apontou Julia Kristeva no livro "O Sol Negro".


Historicamente, a melancolia foi relacionada a uma espécie de sensibilidade especial diante do mundo, principalmente ligada às capacidades artísticas. O poeta Charles Baudelaire é um dos maiores representantes, trazendo a experiência melancólica para muitos dos seus versos. Dessa forma, aproxima-se mais de uma disposição existencial do que de uma doença catalogada pelos Manuais de Saúde Mental da atualidade.


Sombra do objeto perdido: psicanálise e melancolia


Para Hipócrates, a melancolia estava atrelada a desequilíbrios do que se chamava de bílís negra, a partir da teoria dos quatro humores. A palavra melancolia significa bílis negra em sua origem etimológica - melaine kholé. Posteriormente, em 1917, Freud traçou um paralelo entre a melancolia e o luto, ao mesmo tempo destacando as suas diferenças. O traço de diferença corresponde à perturbação da auto-estima na melancolia. Enquanto que em relação às similaridades entre os dois, Freud destaca a perda de interesse no mundo, inibição de atividades e a perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor.


Há uma frase famosa de Freud que diz que "no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego". A melancolia, assim, aponta para a dimensão de uma ferida aberta relacionada às perdas, principalmente aquelas de ordem do entrelaçamento entre identificação e narcisismo. Para Julia Kristeva, a melancolia "se opõe à elaboração intra psíquica da perda".


A ferocidade do superego melancólico torna o sujeito uma espécie de autorecriminador crônico. Contudo, esses ataques excessivos contra si mesmo podem guardar, na verdade, um ataque contra o outro. Ou seja, "se se ouvir pacientemente as muitas e variadas auto-acusações de um melancólico, não se poderá evitar, no fim, a impressão de que freqüentemente as mais violentas delas dificilmente se aplicam ao próprio paciente, mas que, com ligeiras modificações, se ajustam realmente a outrem, a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar", comenta Freud.

Em resumo, na melancolia, a revolta do sujeito diante do mundo, acaba se transformando em uma autoacusação. A reconstrução (didática) desse processo seria descrita pelo seguinte movimento: 1) A ligação do sujeito com uma pessoa ou uma ideia em particular, já a partir de uma fixação e de identificação narcísica; 2) O desapontamento ou ilusão diante dessa ligação; 3) A frutração da libido ao invés de buscar outros objetos, se aloja no próprio ego do sujeito; 4) A sombra do objeto cai sobre o ego; 5) A perda de um objeto se transformou em perda do ego; 6) A autotortura melancólica como um fenômeno do sadismo, relacionada à ambivalência pelo objeto amado e odiado.


Da perda à autoacusação


A centralidade da autorecriminação constante na experiência do melancólico é um componente fundamental para sua compreensão psicodinâmica. Ainda segundo Freud, "no quadro clínico da melancolia, a insatisfação com o ego constitui, por motivos de ordem moral, a característica mais marcante". A autoacusação melancólica, nesse sentido, é um ataque ao "outro-dentro-de-mim", conforme expressão de Decio Gurfinkel.


Em psicanálise, a separação entre sujeito e objeto é, na grande parte das vezes, situada em um limite constantemente ultrapassado e misturado. Amar o outro também é amar a si mesmo e, na virada melancólica, odiar o outro também passa a ser se odiar. As autodifamações melancólicas são confundidas por ele como uma visão penetrante da verdade, aliada ao próprio prazer de uma ideia de "desmascaramento de si". É preciso sempre lembrar, nesse ponto, que quando estamos falando de questões psicodinâmicas, tratamos de aspectos que o sujeito não possui consciência, ou seja, não é um movimento proposital, mas faz parte da sua conjuntura psíquica e da sua articulação no mundo, diante dos conflitos. O ponto, de tal modo, não é que o melancólico não tem do que se queixar, mas o vértice com que o sujeito enxerga as suas queixas e de que modo ele insere tais perdas em sua cadeia psíquica (ou não consegue simbolizá-las).


O núcleo duro da melancolia, assim, é uma perda ainda não elaborada. Uma das diferenças entre luto e melancolia é que no primeiro há o conhecimento do que exatamente se perdeu, enquanto que na melancolia a perda torna-se difusa: "[...] uma vez que, não estando evidente o que foi perdido, o processo de desligamento da libido do objeto acaba por tornando mais complexo", escreve Angélica de Freitas. De forma que o melancólico "sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém" (Freud).


A fixação a um objeto também é um modo de recusa da perda, impedindo ou dificultando que o investimento em novos objetos possam acontecer. Perda essa que "acarreta a perda do meu ser - do próprio Ser", conforme Kristeva. Para essa autora, a assimbolia (inexistência de uma rede simbólica que possa sustentar a perda) não permite ao melancólico um reencontro com o objeto que foi perdido. Assimbolia essa que remete tanto ao náufrago em um vazio como a imersão em um caos impossível de ser ordenado.


O melancólico, portanto, enlaça a sua perda através de um processo identificatório. A melancolia, de certa forma, esconde um luto que não foi elaborado. Em psicanálise, devemos reforçar, o enlutamento não se dá apenas quando perdemos alguém, mas também quando se perde ideais, objetos, expectativas, controle. Como um sádico de si mesmo, o melancólico goza em seu sofrimento, cumprindo uma satisfação inconsciente que envolve prazer e sofrimento ao mesmo tempo: "Como todo sintoma é também meio de gozo, resta-nos perguntar: de que lado está o gozo na melancolia? Do lado do sadismo do supereu, investido de uma "autoridade moral" que lhe permite torturar o eu", afirma Maria Rita Khel em "O Tempo e O Cão".


A melancolia na sua compreensão mais patológica, dessa forma, muitas vezes se instala na impossibilidade de atravessar perdas. É como se o melancólico estivesse em busca de algo perdido, sem saber bem o que ele exatamente perdeu. O sofrimento melancólico, entretanto, também é entremeado de gozo, um prazer paradoxal pelo sofrimento. Gurfinkel lembra que a perda sofrida também é uma perda "produzida". E a perda, devemos lembrar, não é exclusiva daqueles que perderam alguém querido. A perda faz parte da história do sujeito de forma continuada, pelo próprio caráter constantemente dinâmico da vida.


A perda, junto com a sua elaboração e transformação, pode ser sadia no sentido de possibilitar ao sujeito novos modos de relações com o mundo e novos usos de objetos. Por conta disso alguns psicanalistas falam da importância do que se chama de "depressividade", o que entendo como uma disposição para enfrentar os nossos lutos diários, abrindo espaço ao inédito, por mais desconhecido e, a princípio, assustador que esse costuma ser.

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