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Duplo e morada: imagem corporal

Atualizado: 20 de out. de 2023


"Face Reflected in a Mirror" - Julian Alden Weir (1896)

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, trato da imagem do corpo na psicanálise, com ênfase na sua constituição e nos efeitos dos ideais sociais na contemporaneidade.

Texto: De forma direta ou indireta, o conceito de imagem do corpo atravessa o campo psicanalítico, sendo entendido tanto a partir do seu aspecto constitucional no desenvolvimento da subjetividade, como também em relação às tensões pertencentes à paisagem da clínica na contemporaneidade.


Podemos começar apontando que há uma falsa impressão de que o nosso psiquismo como está concebido no momento atual é algo dado e garantido desde o início. As teorias de desenvolvimento dentro da psicanálise apresentam, ao contrário, a ideia de que estamos diante de construções processuais. Parece óbvio, por exemplo, a ideia de que existe um “dentro” e um “fora” em relação a nós mesmos, como se sempre tivesse sido assim. Entretanto, tal separação é derivada de processos complexos, podendo apresentar ruídos. A mesma lógica vale para a apreensão da nossa imagem corporal e as especificidades da montagem dessa imagem em cada um, em momentos distintos da vida.

É preciso ainda destacar, do começo, que as distorções na imagem corporal não são exclusividades dos transtornos alimentares. Outros transtornos também podem manifestar graus diversos e formas de perturbação da imagem do corpo. Especificamente nesse texto, não tentaremos abordar a imagem do corpo do ponto de vista da psicopatologia, mas da estrutura e do dinamismo psíquico.

Para a própria noção de distorção da imagem do corpo cabe uma ressalva: não há imagem do corpo que seja neutra, pois não existe imagem do corpo que não seja atravessada pela subjetividade. Tal imagem, seja vista em um reflexo ou imaginada em processos de pensamento, não é apenas uma luz ou uma questão de Física, mas diz respeito à vida pulsional e fantasmática singular do sujeito.

É possível perceber melhor essas modulações quando percebemos como o estado subjetivo de cada um provavelmente irá afetar a apreensão da imagem do corpo: sentimentos de culpa que podem levar a pessoa a sentir-se "mais feia", a partir de uma ferida no narcisismo, bem como "sentir-se atraente" em estados de engrandecimento narcísico. Ao mesmo tempo, tais estados não estão separados dos ideais que são postos pela cultura, uma vez que trata-se de um corpo que também é socializado e imerso em uma cultura de um tempo determinado, que leva o sujeito a construir sua imagem de maneiras diferentes, a partir de cada contexto.


Nesse ponto, é preciso lembrar que aquilo que é íntimo não diz respeito somente ao "mundo interno". As emoções, desejos e representações também são sociais. Em psicanálise, o corpo aparece como erogenizado, veículo e suporte de prazeres, sofrimentos, experiências únicas ao longo da vida. Espaço de sensorialidade, mas também de nomeações e inscrições não transformadas pela via das representações.. Um corpo que é tensionado pelo desejo, mas também reage aos excessos e intrusões, ao que transborda e reage quando a capacidade de elaboração se encontra sob ameaça ou insuficiente para ter função-continente. Um corpo, portanto, continuamente investido. Corpo orgânico e, ao mesmo tempo, corpo enquanto imagem, vivido então a partir de uma dimensão especular, imaginária.


A partir dessa presença de um corpo na ordem da imagem, o funcionamento psíquico possui o potencial de produzir distorções, que vão desde distorções mais amenas até mais intensas, podendo produzir, em alguns casos, efeitos a nível do comportamento, como na recusa alimentar ou nas preocupações relacionadas à aparência e ao reconhecimento/aprovação social.

Imagem como morada do corpo

Nesse texto, damos ênfase à imagem especular do corpo, mas salientando que existem outros modos de imaginarizá-lo. Em uma frase conhecida e simples apenas na aparência, Freud sugere que o ego é uma projeção da superfície corporal. Posteriormente a Freud, outros autores acrescentaram contribuições importantes para o conceito de imagem do corpo a partir da psicanálise.

O ser humano habita não só o seu corpo, mas também constrói morada em sua própria imagem. Para Antônio Quinet, o eu nunca está só, pois vive acompanhado de sua imagem especular, vive em dupla. A imagem do corpo é composta de componentes relacionais. Reflete vivências do circuito pulsional, trazendo notícias dos efeitos de uma Cena inconsciente. Não haveria, por esse lado, uma imagem corporal totalmente realística, uma vez que o sujeito é atravessado por sua própria experiência, da qual não possui uma apreensão completa.

A imagem do corpo, portanto, também envolve aquilo que sequer é uma imagem no sentido visual. Utiliza referências ligadas ao campo da palavra e das marcas, atravessando o terreno do simbólico até o oceano das experiências vividas, mas não sonhadas ou propriamente metabolizadas. Um dos primeiros autores a considerar que na figuração do corpo há elementos que vão além das propriedades da percepção visual foi o neurologista Paul Schilder, utilizando o aporte psicanalítico como complemento das suas considerações.

Além da concepção de Freud já mencionada, outras contribuições foram significativas para ampliar o que se entende por imagem do corpo, a partir, por exemplo, de Lacan e de Françoise Dolto, bem como de outros autores que resgatam conceitos de narcisismo, identificações e relações de objeto para pensar essa dimensão. É importante salientar que não existe uma compreensão única de imagem do corpo em psicanálise, havendo uma diversidade de formas de apreender esse conceito, que muitas vezes se complementam, mas que não são entendidas necessariamente de formas iguais.


Esses autores parecem se aproximar no entendimento de que a montagem especular do corpo, como mencionado, não depende apenas da ótica, mas das construções psíquicas que se reúnem para produzir certa imagem, tributária então de processos diversos. Imagem, essa, vacilante e sujeita às oscilações das representações simbólicas e das formas como as marcas e inscrições de cada um se articulam ao longo das experiências.

Importante mencionar ainda que nem toda imagem produzida pelo sujeito refere-se a uma “imagem do corpo”, uma vez que o ser humano continuamente produz e reproduz imagens mentais, a partir de lembranças, expectativas etc. Para produzir pensamentos e ideias, por exemplo, é comum recorrer a imagens como maneira de simular possibilidades, uma forma de figuração utilizada como estratégia. O psicanalista J.D. Nasio apresenta ainda uma série de formas de imaginarizar o corpo: produzindo imagens das sensações corporais, vendo o corpo em reflexos e silhuetas, a observância do corpo em movimento e a nomeação desse corpo. Nesse texto, destacamos o corpo enquanto imagem especular, especialmente modulada pelas relações significativas e pela circulação dos ideais sociais.

Esse mesmo autor desenvolve a hipótese de que a criança, ao perceber que as outras pessoas do seu redor possuem acesso a ela através de uma imagem, privilegia essa dimensão em detrimento das sensações internas do corpo. O investimento narcísico nessa imagem especular se dá, então, na observação de como ela é significativa nas trocas relacionais. Sobre esse ponto, é necessário lembrar que o olhar em psicanálise também é um modo de fazer circular a libido.


O corpo de cada tempo: imagens e ideais


Freud já havia apontado que o sujeito tenta fazer um encurtamento da distância entre os ideais. Na contemporaneidade, um dos percursos centrais para isso parece ser a imagem do corpo. Esse aspecto é, marcadamente, um ponto crucial na forma como as trocas relacionais circulam e, também por isso, uma fonte maior de inquietação.


Ana Maria Lopes sugere que "para a psicanálise, a problemática da imagem corporal revela a supremacia do imaginário na clínica contemporânea", referindo-se às dimensões do narcisismo e do especular. Imagem essa, de tal modo, que se coloca diante de expectativas e tensões, que se antecipa em meio à alteridade, uma imagem mais hesitante do que estática.

Quando se fala sobre o contemporâneo, há um grande risco de se assumir uma postura conservadora ou nostálgica, como se o mundo de hoje fosse pior que o de ontem. Contudo, existem continuidades e rupturas, com repercussões a nível da subjetividade e da circulação de afetos. Sobre essas discussões, é sempre importante reforçar que buscar uma alimentação saudável e adequada, praticar atividades físicas com frequência recomendada, bem como buscar estilos e hábitos de vida mais adequados, não são comportamentos patológicos. O que está sendo discutido aqui é quando tais ideais produzem mal-estar e efeitos deletérios sobre a subjetividade, inclusive a nível de uma coletividade.

Também é preciso se distanciar da noção de saúde mental como normalidade média, como se o excesso fosse sempre algo a ser eliminado. O paradigma de saúde mental não deve ser o de um "sujeito médio", sem paixões e intensidades próprias. No fundo, muitas vezes, se adoece não do excesso, mas da alienação aos ideais criados, que obstaculariza acesso à criatividade a partir do surgimento do novo e do inédito.


É importante que o analista tenha um olhar tanto para o macro, as exigências e interdições de cada tempo, como também para o micro ou, para usar o termo de Rubén Zukerfeld e Raquel Zukerfeld, o "contexto micro cultural". Esses autores acentuam a diferença dos conceitos de ideal do Ego, enquanto produtor de sintomas na ordem do conflito, e o Ego ideal, enquanto produtor de sintomas na ordem do déficit. Alguns ideais predominantes de uma época apresentam um apelo que se naturalizam para o sujeito: ou seja, não é encarado como submissão a uma lei, mas a uma "busca ou projeto", podendo gerar carências ou valores de exclusão quando esses ideais não são satisfatoriamente alcançados.

E quais seriam os ideais que organizam o uso e relação com o corpo na atualidade? Rubén Zukerfeld e Raquel Zukerfeld sugerem três deles: ideais de eficientismo, de imediatismo e de mudança/manipulação corporal. O primeiro refere-se à acentuação do triunfo e do ritmo competitivo de vida, baseado no desempenho. Traz como efeito sintomático mais contundente a deterioração do trabalho com a intimidade e o predomínio de uma vida operatória ou normopata. O ideal de imediatismo associa-se à impulsividade e à intolerância à incerteza. Quanto a esse ponto, as adições (que vão muito além do uso de qualquer substância) e o uso de tecnologias como próteses identificadoras aparecem como paradigmas dos efeitos. Por último, o ideal de manipulação e mudança corporal aponta para a busca de um corpo perfeito e jovem, que ultrapassa os limite da biologia. Enquanto efeito, haveria a associação de alguns quadros que envolvem a imagem do corpo, desde bulimia, anorexia, ortorexia (preocupação patológica com alimentação saudável) e vigorexia (preocupação extremista com os músculos), até o mal-estar difuso em relação ao corpo conforme é visto pelo outro e por si mesmo.

A cultura do corpo centraliza o papel assumido pela imagem na paisagem contemporânea, sob diversas ordenações sociais. O corpo como uma espécie de objeto de consumo, na mesma medida em que uma vitrine sujeita a aprovação/reconhecimento. Um ideal de corpo que também traz uma mensagem: domínio de si, superação de limites, tempo destinado para o autocuidado etc. Como já mencionado e é preciso salientar, a hipótese não é de que cuidar do corpo seja um problema, mas o que se coloca em questão é a centralidade assumida por uma imagem corporal como dimensão hegemônica dos modos de subjetivação da época.


A imagem que se vê no espelho, a fotografia do corpo ou mesmo a figuração do corpo de maneira especular não é uma produção neutra, mas atravessada pela singularidade do sujeito e de cada contexto. Há na imagem do corpo algo que também é da ordem do invisível: narrativas sobre a passagem do tempo marcando o corpo, expectativas do que esse corpo poderia ou deveria ser, as marcas sobre os modos e que esse corpo foi sentido como amado, desejado ou rejeitado e repugnado, por exemplo.

Para Christian Dunker e Fuad Neto, "só posso reconhecer meu corpo quando o reconheço pelo olhar do outro. Mas esse outro não é um espelho neutro. Ele é um espelho 'ideológico'". Olhar-se no espelho, portanto, é também ser olhado por uma alteridade. Mesmo em experiências solitárias, há reatualizações de relações e discursos que atravessaram o sujeito e fazem parte do seu aparelho psíquico.


O culto à imagem do corpo dá notícias também de um mundo que não tolera falhas, hipertécnico. O conceito de Baudrillard de holograma nos ajuda a pensar o estatuto dessa imagem de corpo celebrada. O autor faz uma comparação entre a fantasia de captar/dominar a realidade e Narciso debruçado sobre a própria imagem na fonte. O holograma aponta para esse sonho de ultrapassarmos os limites, produzindo uma imagem que nos encontra para além de nós próprios: "Depois da fantasia de ver-se (o espelho, a foto) vem a de poder dar a volta a si próprio, enfim e sobretudo a de se atravessar, de passar através do seu próprio corpo espectral [...]".

O conceito de holograma aponta para o sonho da superação do corpo e, em parte, da própria imagem que o reflexo dos espelhos nos devolvem. Alguns autores que estudam o campo do imagético sinalizam que as imagens digitais atuais não possuem uma aspiração a representar a realidade assim como ela é, mas de produzir um novo tipo de realidade. Uma imagem que busca a simulação e não a representação, conforme Edmond Couchot.


A maneira como cada um constrói na mesma habita que faz morada na imagem de um corpo passa pela história de vida em seu percurso singular, o que inclui as identificações com ideais micro e macroculturais. Trata-se de relações de estranhamento, mais do que unidades e consolidações. O estranho aqui é entendido no sentido psicanalítico, do inquietante familiar. A imagem corporal comporta o íntimo e o êxtimo: uma intimidade mergulhada na alteridade e, mais particularmente no que estamos abordando, em um cálculo que se antecipa a um olhar da ordem da alteridade.

Olhares convocados


A questão do "como a pessoa se vê" passa, antes, pelo problema de quais os olhares que estão sendo convocados. Enquanto seres de relação, a imagem corporal é sempre relacional, constituída a muitas mãos, trocas e perspectivas privilegiadas.


Apesar de não ser o foco desse texto, também considero importante fazer algumas pontuações sobre os transtornos alimentares que apresentam, entre suas manifestações, questões relacionadas à imagem do corpo, como a anorexia. Os autores abordam esse tema sob perspectivas diversas. A dimensão da “recusa” parece um elemento importante para ser considerado, recusa aqui, paradoxalmente, funcionando como uma afirmação. Louise Gluck, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2020, que traz em sua obra sua experiência com a anorexia, escreve em 1994: "Não me parece que o intento da anorexia seja autodestrutivo, embora suas consequências frequentemente o sejam. Seu intento é de construir, quando faltam outros recursos, um 'eu' plausível'".


Em alguns transtornos alimentares, pode ser comum que o paciente se articule de forma egossintônica com suas apresentações do sintoma, ou seja, quando existe uma identificação do sujeito com seus sintomas, produzindo uma espécie de amor e apego, mesmo que haja um grande sofrimento implicado por níveis diversos. Muitas vezes, o paciente busca acompanhamento profissional devido à preocupação ou à pressão familiar. Além da anorexia e da bulimia, existem outros transtornos alimentares, como a compulsão alimentar, o transtorno restritivo evitativo, alotriofagia, entre outros. Mesmo em relação à anorexia e à bulimia existem subtipos clínicos.


Acerca dos transtornos alimentares, também é preciso que a clínica convoque o campo cultural e social de cada época, no sentido de apreender essas demandas de uma forma amplificada e não alienada por uma perspectiva que reduz o sujeito a um indivíduo sem contexto micro e macro.

Como vimos, imaginarizar o corpo é reviver a própria história de vida continuamente. O espelho, objeto paradigmático em relação a essa questão, reflete não só imagens, mas discursos. A montagem subjetiva e inconsciente dessa imagem reflete, no campo visual, os caminhos e soluções psíquicas do sujeito.

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