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Histeria: desejo e anatomia pulsional

Atualizado: 30 de out. de 2023


"Coiled serpent" (obra asteca, século 15/16)
Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, discuto a ideia da histeria como um modo de se relacionar com o desejo.

Texto: A história da psicanálise praticamente se confunde com a história da histeria - mais especificamente, da histeria passando a ser entendida no campo da subjetividade. A chamada “neurose histérica” atravessa o terreno da psicopatologia, mas também é encarada como uma posição subjetiva, uma forma de fazer laço, um modo de se relacionar com o desejo.


A histeria, portanto, a depender do seu contexto, não necessariamente está designando uma doença, mas um modo de se relacionar e de fantasiar (o que, na neurose, se trata da mesma coisa). Tratar a histeria como um resquício de um tempo que passou é esquecer que seus traços fazem parte da nossa constituição.


É importante destacar ainda que as estruturas em psicanálise não significam pureza, ou seja: em uma estrutura histérica também é possível encontrar traços fóbicos e obsessivos, em uma estrutura de predominância obsessiva também é possível identificar traços histéricos, e por aí vai. A estrutura histérica pode se manifestar através de outras apresentações que não a conversão mais clássica: impotências sexuais, impasses profissionais, distúrbios de imagem, angústias, entre outras.


Outro mito presente em relação à histeria é de que se trata de um diagnóstico apenas utilizado para as mulheres. Historicamente, existe essa ligação: o próprio termo “histeria” remonta a “útero” em grego. Entretanto, a histeria está longe de ser exclusividade de algum sexo ou gênero. É importante apontar ainda que o sintoma clássico de conversão (paralisias motoras, anestesias, cegueiras, todas sem causa neurológica) não é o que define a histeria, pois em psicanálise há uma diferenciação entre apresentação de sintomas e estrutura clínica. Ter essa separação em mente é necessária para compreendermos que as manifestações da histeria, na contemporaneidade, podem se apresentar de outras maneiras.


Fantasia e anatomia


Conforme Nancy McWilliams no livro "Diagnóstico Psicanalítico", "Freud foi o primeiro a formular os tipos de questões que deram forma à teoria psicanalítica: Como alguém pode saber e não saber ao mesmo tempo? O que leva as pessoas a esquecerem experiências importantes? O corpo expressa o que a mente não consegue sondar?".


A histeria revelou, na época de Charcot e Freud, que o corpo é costurado por fantasias inconscientes. De algum modo, desvela ainda a resistência desse corpo contra tentativas de regulações sociais, ao mesmo tempo que é uma marca dessas próprias dominações. Traz a fronteira daquilo que é abafado, mas insiste em retornar.


No senso comum, o termo histérico costuma designar alguém que apresenta um comportamento teatral e exagerado. Sobre isso, Antonio Quinet escreve: "A relação do sujeito histérico com a simulação é a mesma que Fernando Pessoa descreveu para o poeta: ele finge 'que é dor a dor que deveras sente'". Ou seja, o engano na histeria não é do outro, mas de si. Sobre essa suposta teatralidade, Nancy McWilliams relembra uma frase de Phillip Bromberg: o histérico é "alguém que passa pela vida tentando fingir ser quem realmente é".


Mesmo que o sujeito não apresente crises histéricas (conversões, principalmente), isso não impede que a experiência subjetiva seja permeada pela predominância de um funcionamento histérico. Em psicanálise, diagnóstico não é designar de qual doença a pessoa sofre, mas de levantar hipóteses sobre como o sujeito lida com os impasses. Entretanto, a conversão é um sintoma importante em qualquer estudo sobre a histeria. A FAPESP publicou uma matéria que reporta casos de histeria que acabam sendo atendidos por equipes de neurologia em razão de crises convulsionais: "Entre as 120 pessoas que passaram pela videoeletroencefalografia nos últimos dois anos na Unifesp, pelo menos 20 apresentavam crises não-epilépticas psicogênicas e ao menos seis de histeria. No hospital da Universidade Federal do Paraná e no Hospital XV, ambos em Curitiba, os neurologistas registraram outros 45 casos de crises não-epilépticas, embora sem estatísticas mais detalhadas".


As conversões apontam para a realidade psíquica do corpo. Em tal sintoma, a intensidade do recalque se transforma na intensidade do "influxo nervoso igualmente excessivo, que, agindo como excitante ou como inibidor, provoca um sentimento somático" (J.D. Nasio). Freud fazia ainda mencionava uma distinção entre histeria de conversão e histeria de angústia. A histeria de angústia pura (sem sintomas conversivos) foi comparada por ele ao caso do Pequeno Hans. Segundo Aline Gurfink, "a diferença essencial entre elas é o fato de a libido liberada pelo recalcamento, na histeria de angústia, não ser convertida, e sim liberada na forma de angústia". Já em relação ao ponto em comum está o mecanismo do recalque, através da ruptura entre representação e afeto, com a representação sendo repelida da consciência. Cabe assinalar ainda que a teoria da angústia possui uma virada na conceituação de Freud em sua proximidade com o recalque: uma primeira teoria da angústia como sendo produto do recalque (portanto, posterior) e, a segunda, da angústia como um sinal de perigo (anterior ao recalque).


Diferente da manifestação de somatizações, o sintoma conversivo possui uma representação, apesar do sujeito não saber conscientemente o que se comunica. A somatização está no campo do (ainda) não haver palavra para tornar a experiência dizível e representável, enquanto que a conversão na ordem de fragmentos amordaçados na nossa história que são expressos, então, pelo corpo. O corpo, assim, na somatização é uma via de descarga e na histeria uma via de expressão. Assim, "o fenômeno conversivo dá testemunho do conflito histérico tensionado entre o desejo que está sempre presente e alguma outra coisa, que se opõe a ele, pertencente ao eu." (Silvia Alonso e Mario Fuks).


De modo, então, que as conversões na histeria são compreendidas como "representações, pelo corpo, de fantasias inconscientes" (Ferenczi). A energia psíquica que estava depositada no recalque retorna sob a forma da materialização no corpo, por isso também se diz que a conversão é uma espécie de fracasso ou falha no processo do recalque. Nasio acrescenta que as marcas via corpo na histeria "não resultam de nenhuma causa orgânica", sendo dependentes, portanto, de um outro tipo de anatomia: a anatomia da fantasia, a qual age sem o conhecimento do paciente.


Para pensar a histeria na contemporaneidade, talvez o melhor seja falarmos em sintomas relacionados ao uso do corpo, não apenas em "sintomas corporais", pois pode dar a entender que a histeria apenas se manifesta em sintomas clássicos de paralisias, cegueiras, sem causas orgânicas, quando também pode estar relacionada com o uso que o sujeito faz do seu corpo, da sua sexualidade e do corpo do outro. O que está em jogo no uso desse corpo é uma "anatomia imaginária".


O sintoma histérico possui uma estrutura de mensagem codificada, inclusive para o próprio sujeito: "Seja na forma da patologia histérica, que visa excitar o desejo do Outro ao fazer enigma do próprio sintoma; seja na tarefa interminável do obsessivo, que consagra sua vida a esmiuçar as regras do Outro, buscando a garantia do seu reconhecimento; seja, ainda, na perplexidade do sujeito psicótico, às voltas com as exigências obscenas do Outro, a expectativa gerada pelo diagnóstico que altera o prognóstico se formula numa mesma pergunta: O que o Outro espera de mim?", escreve o psicanalista Antonio Teixeira, no pósfacio do livro "Neurose, psicose, perversão" (Freud) da Editora: Autêntica.


Histeria e insatisfação do desejo


A insatisfação é a matéria-prima do desejo porque o desejo humano é o desejo de desejo - então o desejo desliza e não para no acostamento pra descansar. No que estamos chamando de traço histérico, a manutenção da insatisfação é um forma de se proteger de um temido gozo, de se preservar. Em razão disso, se fala tanto na estratégia da sedução da histeria (ou no traço histérico da sedução): pôr o desejo na ponta do anzol, mas puxar a isca para trás antes da satisfação, mantendo-a. Enquanto o obsessivo camufla seu desejo, o histérico prefere brincar de esconde-esconde.


Além disso, outro aspecto importante opera em relação a uma missão que o histérico se dá: a de alimentar o desejo do Outro (mecanismo distinto do obsessivo que procura silenciá-lo). Esse sustento do desejo do Outro se dá, inclusive, pela manutenção da marca da insatisfação, oferecendo-se ainda como objeto. Ser objeto do desejo do Outro é uma forma de recuperar o brilho narcísico na histeria, uma vez que esse brilho foi sequestrado pelo Outro: não está nas suas mãos.


Mauro Hegenberg traça algumas diferenciações importantes em relação ao diagnóstico da histeria e do borderline no campo da psicopatologia dinâmica, que nos auxilia à melhor compreensão sobre a própria estrutura histérica: "Na histeria, a castração é fundante, colocando a questão dos limites e da falta como elementos transferenciais frequentes. O cliente histérico disputa com seu terapeuta para ver quem tem mais, ao contrário do borderline, que busca o apoio". Para o autor, na histeria, a angústia presente é a da castração, vivida mais como um sentimento de exclusão do que como um abandono. O objeto de amor (seja qual for), então, na histeria, não apazigua, pois é causa de insatisfação, lembrança da falta não obturada. Por isso a aproximação da histeria com a própria estrutura do desejo humano, cuja falta funciona como um combustível.


Segundo Quinet, "o histérico é o que melhor demonstra que o desejo inconsciente é o desejo do Outro, pois não deseja sem desejar o desejo do Outro no qual seu próprio desejo está amarrado, moldado ou dirigido". Situa-se, então, do lado do desejo (insatisfeito) para privar-se do gozo.


A insatisfação é uma marca da histeria, tratando-se, nesse caso, de uma insatisfação buscada inconscientemente, como uma proteção ao perigo do gozo: "Que teme ele? Há apenas um perigo essencial que o ameaça, um perigo absoluto, puro, sem imagem nem figura, mais pressentido do que definido, a saber, o perigo de viver a satisfação de um gozo máximo" (J.D. Nasio). Cabe assinalar que essa recusa ao gozo também se faz presente nas neuroses obsessivas e fóbicas, com a diferença de que na histeria o desejo está na ordem da insatisfação, na obsessiva na dimensão do impossível e na neurose fóbica o desejo situado como evitado. A neurose, de forma muito simplificada, protege o sujeito contra o que considera ser um gozo perigoso e a maneira como o sujeito faz isso é o que define o tipo de estrutura neurótica.


Essa necessidade neurótica de se proteger de si leva a uma necessidade constante de malabarismo pulsional que desgasta o sujeito: ao mesmo tempo que a angústia faz sofrer, também vê nela uma forma de proteção. Não por acaso, suas defesas, às vezes, são confundidas com conquistas e suas conquistas com as defesas. Nasio, ao questionar qual a fantasia em jogo na histeria, remonta à garantia da insatisfação, chegando a se transformar no desejo de insatisfação: "O histérico deseja estar insatisfeito porque a insatisfação lhe garante a inviolabilidade fundamental de seu ser". A insatisfação histérica se aloja justamente nesse ponto de intersecção, um ponto de falha e de não cruzamento. A identificação na histeria, portanto, é com a falta.


Para Freud, a histeria é motivada pela defesa contra uma ideia intolerável, ideia que não está disponível na lembrança e na associação, mas acaba sendo posta em ato e sintomas. Silvia Alonso e Mário Fuks, em seu livro "Histeria", aborda o mecanismo do recalque através dos conceitos de representação-coisa (inconsciente) e representação-palavra (pré-consciente): "A representação inconsciente é, para Freud, representações-coisa sozinha. Para que haja pré-consciente, é necessário que a representação-coisa seja acrescida de um novo investimento, dado pela ligação com a representação-palavra. Quando este lhe é retirado, a representação torna-se recalcada". Os autores acrescentam que o que é recalcado é sempre a representação, não o afeto.


Histeria e saber


Fala-se, comumente, em textos psicanalíticos com abordagem lacaniana, da importância da histericização do discurso do analisando nas entrevistas preliminares com o paciente, no sentido da falta do saber (sobre si) como objeto do desejo, transformando o sintoma (sinto-mal) em enigma: sintoma analítico. Histericizar, então, é convidar o sujeito a mergulhar nas suas fantasias.


Conforme Suely Aires: "Tomados como objetos de investigação, os corpos das histéricas eram, ao mesmo tempo, internos e externos, próprios e alheios: continham os traços das experiências subjetivas, vivenciadas por aquele sujeito singular, e portavam em si as marcas do Outro social".

Há na histeria, portanto, uma importante questão que envolve a busca por um saber: "De um lado ela quer saber, mas de outro não quer chegar a saber, pois esse saber é sobre o gozo. [...] Se chegasse às últimas conseqüências na procura do saber, apareceria a castração do Outro, o encontro com o objeto causa de desejo (a) e a angústia inevitável", complementa Carolina Coelho em artigo.


Dessa forma, a histeria fala algo que corresponde à própria construção psíquica de um modo geral, com seus impasses e potencialidades diante do corpo, da sexualidade, do conflito e do desejo, colocando-nos diante de uma eterna pergunta: "Que queres?".

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