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Hipocondria e morada do ser

Atualizado: 30 de out. de 2023


Pintura: Walter Sickert

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, discuto aspectos históricos e psicodinâmicos da hipocondria.

Texto: A ideia mais geral sobre a hipocondria, de forma resumida, é de que se trata de uma crença sem fundamento racional de que se está acometido por alguma doença ou processo mórbido. O sujeito se coloca em uma dimensão existencial do alarme e do perigo, que se reflete em uma hiperatenção aos acontecimentos do corpo. Como veremos, entretanto, o campo das "preocupações hipocondríacas" pode ser amplo, indo desde uma certeza inabalável via argumento de que se está doente, até ansiedade quanto a possíveis diagnósticos médicos ou mesmo um temor ao pensar no tema, diante de conversas ou matérias jornalísticas.


O termo hipocôndrio refere-se a uma região da parte abdominal do corpo humano, em referência a uma divisão anatômica mais antiga. Como em livros de detetives clássicos, o hipocondríaco busca pistas no corpo que dêem notícias da presença de uma malignidade que acredita estar presente em algum lugar dentro da sua organização somática.


Em termos psicodinâmicos, existem diferenças entre alguém que tem a absoluta convicção de não possui órgãos dentro do seu corpo, por exemplo (como na síndrome de Cotard), até alguém que possui dúvidas quanto à sua "segurança somática" e de que seu corpo é alvo de processos de adoecer diversos. As angústias hipocondríacas, portanto, podem estar presentes em estruturas diversas, necessitando de uma escuta mais atenta ao sujeito como um todo e não apenas a uma escuta da manifestação sintomática.


Assim, como aponta Maria Helena Fernandes, a hipocondria possui um caráter transnosográfico, não se prendendo a uma estrutura específica. Seu estudo apresenta ramificações das mais diversas em termos de psicopatologia. O psicanalista Donald Meltzer fez ainda uma distinção entre hipocondria e "ilusões somáticas". Enquanto o primeiro refere-se a estados internos do corpo, as ilusões somáticas teriam centralidade na percepção alheia, como achar que cheira mal ou que possui uma aparência perigosamente irresistível.


Um importante marcador em relação à hipocondria se dá quanto ao par dúvida e certeza. Algumas manifestações hipocondríacas aparecem mais sob a forma de uma preocupação de fundo, uma espécie de ansiedade, relacionada a questões de saúde e consequências do adoecer. Enquanto outras aproximam-se de uma espécie de crença inabalável, com uma tonalidade mais delirante, baseada não tanto na dúvida, mas na certeza inquebrantável, mesmo quando há argumentos claros.


O diagnóstico preciso é difícil e complexo, conforme aponta esse estudo. Ainda segundo essa obra, uma diferença maior entre pacientes, de fato, hipocondríacos, e outros que apresentam somente preocupações gerais quanto à saúde, é que os pacientes mais hipocondríacos buscariam menos construir hábitos saudáveis, já que uma certa convicção sobre a doença já estaria presente, como se não restasse "o que fazer".


Outros pesquisadores apontam que quando a preocupação com estados do corpo é mais secundária a transtornos do pânico, geralmente o sujeito tem receio de adoecimentos mais agudos e repentinos, como infartos. Já na preocupação hipocondríaca mais próxima da definição tradicional, o receio se dá principalmente a doenças de caráter ou consequências crônicas, como o câncer.


Conforme Patricia Paraboni, em uma síntese muito precisa: "No caso dos pacientes hipocondríacos, o corpo é o palco onde o sujeito se deixa levar pelas oscilações de suas dúvidas e certezas. O hipocondríaco duvida de sua saúde,do funcionamento de seus órgãos e, para obter a confirmação de suas hipóteses, acaba por procurar um médico que, no entanto, assegura ao paciente que não haveria nada de errado com ele. Porém, o sujeito tende a permanecer com a convicção de um suposto estado grave de saúde. Dúvida e certeza fazem parte aqui de uma mesma dinâmica".


Morada em risco


Em certo entendimento, o território hipocondríaco do corpo seria um local hipercatexizado, de forma similar ao investimento libidinal em casos de doenças orgânicas. Em certos momentos da teoria psicanalítica, a hipocondria aparece como sintoma dentro de estruturas variadas, já em outras passagens é situada como uma das dos três formas de neurose atual. Em sua Conferência sobre "O estado neurótico comum" (1917), Freud comenta que as formas de neurose, apenas ocasionalmente, aparecem de uma forma pura, no entanto, a fins de estudo, sua separação é importante, assim como se separa as rochas dos minerais.

Em diversos momentos da sua obra, Freud discutiu a hipocondria, entretanto, não podemos afirmar que há um acabamento consolidado em relação à questão. Existiria uma modificação no órgão ou zona hipocondríaca, só que não uma alteração orgânica, mas em termos de erogeneidade e concentração libidinal. Ou seja, ao menos em termos de psicodinâmica, o paciente hipocondríaco estaria experienciando algo similar a uma doença orgânica, no que diz respeito ao investimento libidinal em partes e zonas do corpo.


No "Rascunho H" (1895) de Freud há uma aproximação entre paranoia, projeção e hipocondria, na medida em que o hiperfoco dado ao estado do corpo poderia ser compreendido como uma projeção de algo mais intolerável, presente no mundo interno do paciente, mas que acaba sendo projetado às preocupações orgânicas frequentes. Em trecho da análise do caso Schreber, Freud escreve que "parece-me que a hipocondria está para a paranóia na mesma relação que a neurose de angústia está para a histeria”.


Nesse contexto, o perseguidor na hipocondria, entretanto, aloja-se dentro do próprio do corpo, é intracorpóreo. O hipocondríaco parece o tempo inteiro ameaçado por um tipo de seu duplo-doente. Em algumas situações, o elemento culpa é algo importante a ser trabalhado na hipocondria, no que diz respeito à doença aparecendo como uma ameaça de punição ao sujeito devido às suas fantasias. Em quadros mais relacionados à neurose obsessiva, a hipocondria aparece a partir de um deslocamento de aspectos recalcados do sujeito, ligados principalmente à culpa e à agressividade.


O psicanalista húngaro Ferenczi em "Sugestão e Psicanálise" (1912) comenta que o medo hipocondríaco é "sem fundamento quando ele observa seu pulso, controle incessantemente seu funcionamento cardíaco, acreditando estar para morrer a qualquer instante; mas ele traz em si uma causa escondida, uma angústia secreta que alimenta continuadamente a angústia dirigida para seu corpo".


Conforme Giuseppe Civitarese em um curso promovido pelo Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP), o corpo da hipocondria não é um corpo transparente, mas o corpo da Esfinge ("Decifra-me ou te devoro"). Manuel Matos em artigo sobre o tema comenta que o hipocondríaco "não suporta a incógnita".


A "casa" (o corpo) do hipocondríaco é uma morada estranha ao próprio morador. Isso repercute em uma contínua tensão psíquica. O encanamento parece que sempre irá romper, o telhado prestes a cair, o piso esconde buracos e fraturas. Uma casa habitada ainda por fantasmas desconhecidos, que dão notícias dessa apreensão difusa de que há no corpo uma "malignidade" que se faz presente.


Para Giuseppe Civitarese , o desafio com esses pacientes é de abrir espaço para uma "leitura da leitura", ou seja, uma análise sobre como o sujeito fornece sentido a sua realidade. Desse modo, não é verdade dizer que o hipocondríaco não sente nada. Algo acontece a nível do corpo, mas não no corpo anatômico, no corpo-fantasma ou corpo-fantasia. Ainda, o corpo intersubjetivo, relacional.


O psicanalista lembra que, em francês, a palavra corpo é escrita sempre no plural: corps. Assim, reduzir o sujeito a apenas um corpo seria uma simplificação. O que o hipocondríaco busca, mesmo que não saiba ou não faça isso com consciência, é um acolhimento ou uma escuta desses outros corpos que igualmente o constitui.


O hipocondríaco, muitas vezes, oferece uma hipervigilância a si, remetendo então a estados de desamparo e de desconfiança quanto a garantia de que o outro estaria mesmo disponível para cuidá-lo. Nesse sentido, Manuel Matos escreve que a queixa hipocondríaca "pode ser entendida como uma necessidade de partilha da dor". Bernard Brusset comenta que a manifestação hipocondríaca também pode ter um caráter de autoproteção, mais especificamente uma criação de uma zona que previne o sujeito de viver um trauma sem a devida preparação.


Uma possibilidade da análise é fornecer um espaço para que o sujeito possa abrir-se diante das suas fantasias que o constituem e o interpelam. Um ponto importante é o modo como o sujeito relaciona-se com esse corpo, não apenas o corpo-imagem, mas o corpo pulsional, habitado pelas fantasias, erotismo. Nesse sentido, o hiperfoco ao corpo anatômico pode ser uma forma de estancar um corpo ainda mais assustador, aquele banhado pela erogeneidade e pela fantasia, que não obedece apenas à lógica da necessidade intintual. Como diria o psicanalista Christophe Dejours, um corpo subvertido.


Em uma compreensão mais próxima das colaborações de Winnicott, a mente hipocondríaca torna-se refém das estruturas do corpo. Ao invés de "morada do ser", o corpo se torna um abrigo frágil, sempre prestes a desmoronar. Ao invés de uma relação continente-contido, estabelece-se uma relação persecutória, de ataque e defesa constante. Essas angústias dão ao paciente um tom constante de alerta à sua "sonoridade psíquica", como um ruído de tensão e antecipação de um ataque à sua integridade.

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