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Futuro: mover-se no desconhecido

Atualizado: 15 de jul. de 2021

"The Street Enters the House" de Umberto Boccioni (1911)

O ser humano possui uma incrível capacidade de mover-se no tempo, seja através da rememoração, em que cria e recria continuamente o que viveu no passado, seja através do vislumbre de um futuro, sempre um tanto inexato, por mais que calculado. E mover-se, como no mito de Sísifo, é uma infindável tarefa humana.


A ausência de uma perspectiva de futuro (um curto circuito na capacidade de imaginar) pode ser uma experiência extremamente aflitiva, encontrada principalmente em alguns casos de suicídio, em que o que está no porvir parece apenas um destino turvo. Podemos pensar ainda no recuo diante do futuro na depressão ("O depressivo é aquele que se retira da festa para a qual é insistentemente convidado", segundo Maria Rita Khel) ou a antecipação ansiosa ("Meu esforço: trazer agora o futuro para já", em um trecho de Clarice Lispector). Mas aqui tentarei abordar a relação do futuro além do terreno da patologia.


Um dos grandes desafios dos processos meditativos é essa recolocação no estado presente, o que tem uma relação direta com o corpo, a atenção com a respiração naquele momento, os pensamentos que vêm e que vão, as tensões musculares percebidas pela consciência - antes aspectos mais existentes como uma espécie de música de fundo. O problema de uma música de fundo é que nem sempre ela é uma música, às vezes é um ruído, um grito (silencioso ou não), um barulho. Logicamente, os processos de meditação, com uma história milenar, são muito mais complexos e amplos, mas acredito que um dos seus grandes benefícios terapêuticos está nessa atenção dada ao presente e à duração do tempo, o seu “correr”.


Colheitas e temporais


Resgatando o início do texto, o ser humano possui uma grande capacidade imaginativa para elaborar cálculos complexos o bastante para construir desde satélites hipertecnológicos que flutuam na imensidão, até nanopartículas com capacidades cada vez maiores de processamento. Sem isso, não seria possível planejar plantios e colheitas, entre outras habilidades que nos permitem viver um pouco menos sem a pressão de uma busca imediata. O historiador Yuval Harari, por exemplo, escreve que "desde o advento da agricultura as preocupações com o futuro se tornaram atores importantes no teatro da mente humana", no livro Sapiens - Uma Breve História da Humanidade.


Essa capacidade imaginativa também pode ser combustível para alimentarmos preocupações (essa palavra é interessante, pois remete à pré-ocupação, como se estivéssemos nos ocupando de algo que ainda não existe). Utilizando esse mesmo paralelo com a agricultura, estamos constantemente interessados em saber se nossos planos irão resultar em produtivas e fartas colheitas, se seremos capazes de nos preservarmos diante do mau tempo, se haverá alimento psíquico à nossa disposição ou se precisaremos nos preparar para enfrentar períodos de fome, tristeza e desamparo.


Ainda em Sapiens - Uma Breve História da Humanidade, um livro que não é uma obra de psicanálise nem diretamente de psicologia, há uma pista para pensarmos por que, afinal, somos tão obcecados com o futuro: "Os camponeses se preocupavam com o futuro não só porque tinham mais motivos para se preocupar, mas também porque podiam fazer algo a respeito".

Diante da incerteza, o ser humano se torna um especialista em achar que possui o controle. Faz promessas, recorre a pensamentos mágicos, estabelece metas e previsões, culpa-se pelo que deixou de fazer.


Oráculo


No medo do futuro, portanto, há um componente de controle: nosso anseio em anteciparmos - e, de preferência na maioria das vezes, estabelecermos com exatidão o que virá por aí. O futuro, entretanto, foge ao nosso controle. Ninguém, afinal de contas, vive em um laboratório, em que se estabelece as medidas do nosso afeto, do nosso desejo e das nossas ações. Na paisagem humana, às vezes junto com o desejo de vitória, pode haver o flerte pela derrocada. O amor se mistura com o ódio, afinal de contas, as pessoas que mais precisamos, são também os alvos mais frequentes de decepções. Não é possível purificar as substâncias do nosso psiquismo, separá-las em frascos. E para tornar tudo ainda mais complicado: não é possível controlar o outro.


Esse mesmo descontrole que condena é também o que resgata. Ou podemos simplesmente dizer que o descontrole é um dado em si, que nem amaldiçoa e nem salva, como uma doença, que nunca existe como castigo e nem como redenção, mas é algo que faz parte da existência e que nos implica enquanto sujeitos desejantes. É a forma que nos implicamos, ou seja, contamos a nossa própria história, a partir desses dados da existência, que acaba ganhando o maior peso.


Também não é possível afirmar que o ser humano é simplesmente cego ao futuro. A questão principal é que sempre lidamos com probabilidades e não com certezas. A própria etimologia da palavra "probabilidade" remete a provar, testar. Se nos alimentamos muito mal, provavelmente ficaremos doente. Sabemos disso porque isso já ocorreu antes, com pessoas que conhecemos, através do que ficamos sabendo. A utilização de medicamentos, por exemplo, possui base científica em testes que foram realizados, que provaram não a certeza da cura ou do efeito, mas a grande probabilidade dos seus benefícios, assim como os riscos dos prejuízos.


A probabilidade, portanto, tem muito mais a ver com o passado do que com o futuro. Quando imaginamos o que vai acontecer, muitas vezes estamos apenas imaginando o que já aconteceu e passamos a achar que o mesmo irá ocorrer de novo. Naquilo que acreditamos que irá ocorrer, há muito do que já ocorreu, mesmo que não tenhamos elaborado isso da forma como gostaríamos, e muitas vezes precisamente por isso. Diante do futuro, não há garantias, mas expectativa, desejo e memória. Isso tem diversas implicações psíquicas, contribuindo não só para o universo das psicopatologias, mas para os nossos próprios modos de ser e estar no mundo e em nós. Clarice Lispector também foi precisa, ao seu modo impreciso, quando escreveu que "O futuro é para a frente e para trás e para os lados".


Desconhecido


Geralmente enxergamos o passado como uma espécie de trilha única, linear. Já o futuro é mais similar a um labirinto, em que não se sabe para onde ir. Lembro nesse ponto do psicanalista inglês Wilfred Bion, para quem a análise era um trabalho de tolerância ao desconhecido. Pensando nisso, afirmava que a memória e o desejo no processo analítico podem ser utilizados como defesas psíquicas, tanto do paciente, como do analista. Utilizando de teorias da relatividade e da incerteza, utilizou um trecho do poema John Keats que representa bem essa ideia: "[...] estou falando da Capacidade Negativa, ou seja, quando um homem é capaz de existir nas incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer esforço irascível para obter fato e razão".


Ainda lançando mão da obra de Clarice Lispector, uma escritora fundamental para pensar a psicanálise, remeto a esse parágrafo do livro Água Viva, lançado em 1973, que parece espreitar a complexidade da relação do ser humano diante da misteriosa imensidão do tempo futuro: "E sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico, fantástico e gigantesco: a vida é sobrenatural. E caminho segurando um guarda-chuva aberto sobre corda tensa. Caminho até o limite do meu sonho grande. Vejo a fúria dos impulsos viscerais: vísceras torturadas me guiam. Não gosto do que acabo de escrever - mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. E respeito muito o que eu me aconteço. Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço".

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