Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, falo sobre o livro "Escute as Feras" de Nastassja Martin.
O limite é um tema que fica sempre à espreita na narrativa de "Escute As Feras", da escritora Nastassja Martin. Na superfície, trata de um encontro real entre um urso e a autora, enquanto realizava sua pesquisa etnográfica em regiões isoladas da Sibéria, que resultou em um rosto desfigurado e muitas cirurgias.
É um livro dedicado a processos de metamorfose. Há uma insistência em não unificar o ocorrido fantástico com um sentido totalizador ("Entendi uma coisa: o mundo desmorona simultaneamente em todos os lugares, apesar das aparências").
A autora insiste em um ponto cego, irrepresentável. Não somente Nastassja e o urso sobrevivem ao encontro, mas esse resto que fica imerso na imensidão da floresta e insiste em não ser nomeado.
Do encontro, o urso vai embora com algo de Nastassja e a mesma vai embora mais urso ("Houve hibridação e, no entanto, continuo sendo eu mesma. Quer dizer, eu acho"). Da mesma maneira, nas relações construídas no contexto do hospital e com os companheiros de trabalho de campo, algo parece sempre ficar no outro, a cada proximidade/separação.
O corpo que ficou na memória é menos um espaço fechado e mais um território em que encontros acontecem, alargando e diminuindo as fronteiras ("Gostaria de explicar a ela que, há anos, coleto narrativas sobre as presenças múltiplas que podem habitar um mesmo corpo - para subverter o conceito de identidade unívoca, uniforme e unidimensional").
A experiência de cuidado de Nastassia também é um elemento importante da obra. Desde a delicadeza de enfermeiras limpando as suturas, até o fascínio provocado pela imagem de uma mulher que lutou contra o selvagem.
No fim das contas, quanto a "escutar as feras", fica a dúvida se a fera é o urso, a antropóloga ou, na verdade, esse espaço limiar, frágil e, muitas vezes, artificial, entre o humano e a natureza.