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Escolhas profissionais: contribuições psicanalíticas

Atualizado: 30 de out. de 2023


"Girl with Sailboat" de Edmund Tarbell (1899)
Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, discuto a ideia de que a escolha profissional é uma tentativa de acordo com o tempo, pois envolve a renúncia a outras possibilidades.

Em O Mal-Estar na Cultura, publicado em 1930, Freud escreve que "há [...] muitos caminhos que podem levar à felicidade tal como esta é alcançável pelo homem, mas nenhum que leve a ela com segurança". Há em uma escolha profissional algo parecido com uma tentativa de acordo com o tempo: assume-se a incerteza do futuro e, em troca dessa incerteza, lança-se um ato de decisão. Nessa decisão "se preserva a esperança de que, um dia, este futuro lhe devolverá a possessão de um passado, tal qual ele sonhou" (Piera Aulagnier).


Escolhas humanas carregam lutos e a decisão por uma profissão não é diferente. Escolher, portanto, tem algo também de um "dano interno", pois envolve uma renúncia. A psicanálise parte sempre da singularidade do sujeito e como isso se entrelaça com seu movimento de vida. Nesse sentido, a vida profissional do sujeito está diretamente relacionada à sua psicodinâmica: os padrões de compreender o mundo e de reagir ao mesmo, os desejos e ambições na carreira, bem como os medos, potencialidades e fantasias relacionados.


Sobre esse tema, o pedagogo Silvio Bock faz uma provocação interessante. Talvez, mais interessante do que pensar “Qual a profissão que eu desejo seguir”, a pergunta mais apropriada seria: “Que projeto de vida eu desejo para mim?”. Mais do que "errar" em "acertar" quanto a decisões tomadas, pode-se pensar no conceito de bons e maus encontros do filósofo Spinoza. Os bons encontros enquanto experiências que desenvolvem a potência do sujeito e sua capacidade de confiar no ambiente e em si. Maus encontros quanto ao que internaliza uma agressividade contra o ambiente e ao próprio sujeito.


É preciso considerar ainda que a própria noção de "escolher uma profissão" parece anacrônica, uma vez que a contemporaneidade parece impor uma flexibilidade em muitas das nossas escolhas, com muitas pessoas trabalhando naquilo que não necessariamente estudaram na universidade, muitas outras adaptando-se às necessidades ditadas pelo mercado, além daquelas que não sentem necessidade de se dizerem pertencentes a um tipo específico de profissional


Seria até mesmo ingênuo pensar que temos acesso direto a todos os fatores que utilizamos como critérios para se tomar decisões. Isso não significa, por outro lado, que devemos excluir ou desconsiderar questões econômicas, sociais, familiares, culturais. É preciso lembrar que, afinal de contas, o inconsciente não está separado disso tudo. Especificamenteno Brasil, junto com a precarização de acordos trabalhistas, também podemos pensar na precarização do “contrato psicológico" (Ayala Malach Pines) entre o sujeito e as empresas/organizações, facilitando um sentimento difuso de ansiedade e de maior insegurança frente às pressões ocupacionais

Rodolfo Bohoslavsky nos lembra que trabalha-se não só pra satisfazer necessidades biológicas, mas também psíquicas (ou, mais adequadamente, desejos, uma vez que se ligam às fantasias). Tal aspecto parece importante principalmente para a consideração não só do trabalhador, mas também das empresas contratantes, para que se considere sempre a subjetividade implicada e a saúde mental envolvida.


A premissa geral, então, é de que a relação do sujeito com o trabalho está ligada a questões gerais do meio em que se vive, mas igualmente atrelada com as identificações do sujeito, mecanismos de defesa, ordens superegoicas, idealizações, fantasias, culpas e reparações, representações recalcadas, experiências vividas mas não elaboradas, ou seja, tudo aquilo que faz parte da psicodinâmica inconsciente.


Além disso, não existe "cura para o inconsciente", até porque o mesmo não é uma doença e nem um mal, como se sem inconsciente tivéssemos domínio da certeza. O inconsciente não é o mesmo que sintoma. Aliás, o inconsciente é fundamental para a própria possibilidade humana de lidar com o mundo de outra forma que não seja somente a "natural". Ou seja, o inconsciente nos humaniza, produz seres de linguagens.


Construção de si


Tomar uma decisão soa parecido com atirar uma flecha: uma sucessão de movimentos e reflexões que possuem o objetivo de atingir um futuro desejável possível. E, muito frequentemente, nossas previsões do futuro são, na verdade, ruínas do que se passou. Ruínas porque não são estruturas sólidas e unificadas, mas fragmentos e pedaços das experiências. Quando se questiona a batida pergunta “o que queremos ser quando crescer” também estamos nos perguntando sobre quem já fomos.


Existe uma ideia de que existem escolhas certas e outras erradas, como se escolher fosse selecionar os números corretos na loteria. A maior parte das escolhas, entretanto, tem mais a ver com construção do que com acerto e erro. É necessário destacar ainda que, em algumas situações, a dúvida em relação a uma profissão também pode camuflar questões emocionais que dificultam a adaptação à profissão escolhida.


Daphne Gusieff, psicanalista peruana, sugere que cada pessoa pensa em uma carreira acreditando que essa que irá satisfazer seu mais forte conjunto de necessidades, contanto, além disso, que essa carreira não ponha em risco o seu sistema psíquico defensivo. Malach-Pines e Yafe-Yanai sugerem que as pessoas escolhem determinadas carreiras com base: I) na possibilidade de que elas repliquem situações significativas da vida infantil; II) no desejo de preencher necessidades não satisfeitas; III) como forma de resgatar sonhos e/ou realizar certas expectativas familiares.


Ao invés de se pensar que a escolha de uma profissão não parece um tema muito "psicanalítico", deveríamos pensar que há poucas coisas na vida mais "psicanalíticas" do que escolher uma profissão. Além disso, a própria atuação profissional em si coloca o sujeito diante de núcleos psicodinâmicos, da mesma forma que o coloca diante das suas potencialidades, facilidades e possibilidades.


Passa-se, então, a transitar nas âncoras de identificação do sujeito, que se conectam (ou se distanciam) das representações das diversas possibilidades profissionais. Identificações que se ligam a ideias como: "fazer o bem" para alguém ou para um grupo de pessoas; oferecer justiça e possibilidade de produzir reparações; trazer a verdade dos fatos; abordar a ficção da subjetividade e a dor/alegria dessas histórias que nos contamos e nos contam; trabalhar com o saber e o não-saber, o domínio do conhecimento e do desconhecimento; o infinito uso do corpo ou da imagem, entre tantas mais infinitas possibilidades.


No contexto da adolescência, o pouco contato dos jovens com profissionais "de carne e osso" durante o período escolar, com seus dilemas, desafios e potencialidades, os aproxima de serem capturados por uma rede de idealizações e estereótipos em relação às profissões. É preciso ainda destacar que seria absurdo considerar que alguém com menores estruturas e condições financeiras não consegue escolher uma profissão que se sinta pertencente devido apenas a uma questão de ordem pessoal e individual. Ignorar isso é reproduzir fatores de adoecimento subjetivo, pois produz culpa ao invés de produzir autonomia: "Assim, ao invés de proceder uma análise de como a sociedade está estruturada, desenvolve-se a análise do indivíduo para que ele bem se adapte a esta ordem sem, sem jamais questioná-la", escreve Silvio Bock. Nesse ponto de vista, refletir sobre escolha profissional também é lembrar que vivemos em uma sociedade desigual, o que não significa desconsiderar que cada sujeito possui sua singularidade radicalmente particular.


Pensar sobre escolha profissional também é uma reflexão sobre o que o sujeito entende ser uma potência interna disponível para uso e o que, do contrário, é um obstáculo, um elemento faltante ou mesmo uma potência desativada. Desse ponto de vista, elementos racionais e inconscientes se misturam. Não podemos dizer que é simples aquilo com que o aparelho psíquico se depara no contexto do trabalho, pois ele é "encarregado de representar e de fazer triunfar as aspirações do sujeito, num arranjo de realidade suscetível de produzir, simultaneamente, satisfações concretas e simbólicas" (Dejours).


Como em toda escolha, a história de vida do sujeito é posta no jogo. No fundo, a escolha profissional conduz a uma pergunta que é infindável, pois se renova: o que queremos? Trata-se de uma pergunta complexa e de difícil resposta. Quem parece ter respostas prontas e simples para o desejo muito provavelmente está te enganando ou se engananando (ou ambos). A psicanálise mostra que existem experiências as quais não temos acesso direto, mas que influenciam diretamente nossas vidas e decisões (a "outra cena" de Freud); que o desejo humano é o desejo do Outro, ou seja, que o nosso desejo enquanto sujeito é incuravelmente assujeitado, alienado à linguagem.


O que move para outra pergunta: que tipo de reconhecimento (do Outro) pretende-se produzir com as escolhas profissionais? Há no ser humano um vazio estrutural e o desejo nos move a pôr algo nesse buraco. Mas o buraco nunca fecha - e, ainda bem -, pois se não fosse o vazio não haveria desejo. Nas decisões de carreira, depositamos uma imensa expectativa no preenchimento desses furos e buracos. É como se vivêssemos buscando uma plenitude que nos leva ao fim da necessidade de desejar, pois todos os buracos foram tapados. Mas, ao mesmo tempo, estar vivo é, automaticamente, ser desejante, ser tocado pela falta, então a busca é contínua e não encontra final. Continuamente o sujeito se depara na vida com algo como um "deserto de palavras", experiências em que as palavras escorregam ou não acompanham aquela vivência como se gostaria, o que o move a pescar novos significantes para que aquilo tenha um sentido.


A psicanálise nos mostra ainda que o Eu pode querer uma coisa e o Inconsciente outra. Para se compreender um pouco melhor (nunca completamente) o "quem sou eu", é preciso entender o Outro que faz morada dentro de mim" (um pouquinho melhor, nunca completamente). O Outro em maiúscula pois não designa uma pessoa específica, mas um jogo de linguagem do qual participamos, mesmo sem querer, e que nos sujeita e nos faz sujeitos.


Não investimos apenas tempo no trabalho, mas também uma boa porção de narcisismo. Basta lembrar da conhecida frase "me sinto (ou não me sinto) realizada em meu trabalho". A forma como é construída dá a entender que o trabalho não realiza apenas desejos externos, mas realiza ainda uma espécie de "projeto inventado de sujeito", um sentimento de congruência entre fantasia e realidade. O trabalho como forma de realizar a fantasia de si.


Busca interna



O psicanalista francês Christophe Dejours deu ênfase às relações entre trabalho e sofrimento mental, ou seja, a psicopatologia do trabalho: "Em certas condições emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos e uma organização do trabalho que os ignora". Dejours destaca a importância de que o trabalho proporcione "ressonância simbólica", uma espécie de conciliação entre o inconsciente e as atividades realizadas (Ana Magnólia Mendes).


Acrescento que não devemos culpabilizar o sujeito por não construir essa "ressonância simbólica", pois também é responsabilidade de outros fatores para que essa ponte seja feita, desde o ambiente de trabalho, o sentido do mesmo, as representações sociais da prática, questões econômicas, entre muitas outras. Essa ressonância simbólica pode ser entendida, então, com o encontro dialético entre a história de vida de cada um (com suas necessidades, fantasias e furos) e o universo do trabalho (com suas necessidades, relações estabelecidas, configurações, retornos e representações sociais).


Há ainda a ideia comum de "vocação" e de "dom" para determinadas tarefas, palavras com fortes conotações religiosas, que carregam o sentido de um chamado e de uma designação quase divina. Essa representação pode fazer com que muitas pessoas sintam que a missão delas está em algum lugar pelo mundo, mas não conseguem encontrá-la. Ou mesmo que não possuem vocação para nada, portanto, não foram "chamadas" ou mesmo designadas com um dom. É importante escutar tais construções, uma vez que guardam idealizações, expectativas, que não estão descoladas da história singular de cada um.


Escolhas profissionais são, assim, interrogações sobre o desejo, suas potencialidades e limites. E, sobre esse ponto, devemos lembrar, como sinalizou Lacan, "que o desejo não se apresenta com o rosto descoberto" (Seminário 8). Na sua teoria sobre as pulsões, Freud já sinalizava que o ser humano não possui um "objeto fixo". A satisfação pulsional é variada, indeterminada, e, além disso, "não precisam ser objetos reais presentes, podem ser objetos fantasiados" (Nelson Ernesto Coelho Jr.). O que nos faz constatar que aquilo que se busca, no fundo, não está em nenhum lugar, a não ser no movimento da fantasia. O objeto é apenas algo construído, uma forma de "impedir o vazio, a descontinuidade" (Carlos Lannes). É como se o sujeito estivesse em busca incessante de uma "chave perdida", mas que na verdade nunca sequer a possuiu, tateando então para reencontrar o que nunca foi encontrado.


Em continuidade a isso, o sujeito atravessa a vida por meio de crises: a montagem das fantasias infantis, a descoberta da sexualidade e do corpo, a busca por pertencimento, as dúvidas e ansiedades da carreira profissional, os dilemas diante do papel social e do próprio sentido da existência, entre tantas outras. Por crise aqui, não sinalizo necessariamente momentos de apenas de dor e sofrimento, mas de "turbulência" no campo das emoções e das representações, ou seja, momentos que continuamente e frequentemente colocam à prova o edifício psíquico, exigindo muitas vezes reordenações e mudanças correspondentes a situações completamente inéditas (e o sintoma, afinal de contas, não deixa de ser também um modo insistentemente repetitivo e desgastado de lidar com o inédito). Na relação de trabalho, isso não se dá de forma diferente.



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