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Dor crônica e lesão subjetiva

Atualizado: 30 de out. de 2023


"The Sea of Ice" de Caspar David Friedrich (1823 - 1824)

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, falo da dor crônica como uma experiência que também é singular, vivida de forma diferente por cada pessoa, de acordo com a sua história de vida.

Texto: Uma pesquisa da Sociedade Brasileira do Estudo da Dor em 2015 destacou que 37% dos 919 entrevistados relataram conviver com dor crônica por mais do que seis meses. São diversas as morbidades que podem provocar dores de forma duradoura. Esse tipo de sofrimento está diretamente relacionado a uma vivência subjetiva sobre a dor. Discutir essas implicações é ainda mais importante considerando a mudança do perfil epidemiológico no Brasil.


É necessário destacar que esse texto dá ênfase às dores físicas com lesões presentes no corpo, através de processos diversos. Entretanto, a questão da dor também pode ser abordada em relação à dor da perda (luto, depressão) ou as dores crônicas que não apresentam causas físicas evidenciadas. Pode ser igualmente comum que impasses psíquicos provoquem uma maior sensibilidade e reatividade à experiência da dor física.


A dor crônica afeta diretamente a capacidade do sujeito utilizar os seus pensamentos e, de um modo global, impacta na vida subjetiva. Do "tenho dor", a cronicidade favorece para o "sou dor", como sinaliza J.-B. Pontalis, produzindo um empobrecimento da vida fantasística do sujeito: "O sujeito ele mesmo não se comunica com sua dor: alterna entre o silêncio e o grito". Devido a esse domínio que a dor crônica pode exercer na vida da pessoa, pode ser produtivo, dentro da experiência clínica, abrir espaços para falar também do que não é dor.


Considerando que o corpo humano é atravessado pela linguagem e pelo inconsciente, a dor humana vai além apenas da questão fisiológica. Fazendo uso de uma referência a Freud, nem todas as dores crônicas são causadas pela mente, entretanto, todas são "utilizadas" por ela: há uma participação subjetiva implicada. O neurocirurgião especialista em dor John D. Loeser sustenta que "aqueles que querem tratar pacientes com dor crônica devem incluir o uso da narrativa em suas habilidades diagnósticas e terapêuticas."


Nasio fala em três dimensões da dor: a Real (excitação que afeta os tecidos corpóreos), a Simbólica (as representações mentais sobre a dor) e a Imaginária (as articulações do corpo como uma imagem com a vivência dor). Por ser uma experiência extremamente singular, muitas vezes o paciente pode se sentir incompreendido pelas equipes de saúde, uma vez que não é possível medir exatamente a dor e que, para transmiti-la ao outro, é necessário muitas vezes transformá-la em palavras que aproxime dessa vivência. Para Edilene de Queiroz, "a dor é testemunho da presença da pulsão no corpo e a pulsão, por sua vez, é um vestígio da linguagem que modifica a necessidade".


O significante 'dor' na cronicidade costuma ficar congelado e a possibilidade de articular novos significantes pode se transformar em uma outra via que não seja a da repetição. Conforme Nasio, "a dor é um fenômeno misto que surge no limite entre corpo e psique". Freud já apontou que as dores físicas perturbam a economia psíquica do sujeito, uma vez que há um desinvestimento do mundo externo e um superinvestimento no sentido narcísico.

São pessoas acometidas por dores encefálicas, inflamatórias, neuropáticas, pélvicas, traumáticas, neoplásicas etc. É um tema, então, que envolve todos os profissionais de saúde. Atualmente, diversos recursos produzem um maior nível de analgesia ou formas de controlar a dor, desde ferramentas medicamentosas e invasivas até não-medicamentosas. Afinal de contas, o ser humano tenta formas de lidar com a dor desde o início da sua história.


Danos físicos e lesões subjetivas


A escuta psicanalítica, nesse sentido, deve permitir a passagem do "universal do rótulo", através dos diagnósticos que acompanham o sujeito, até o "saber singular sobre sua dor, saber este que advém de seu inconsciente" (Fabio Barreto e Vera Besset). A dor física, afinal de contas, também faz parte da história de vida do sujeito, tratando-se então, de uma marca subjetiva.


A dor é como um mapa: ela estabelece limites para o corpo e auxilia o sujeito a identificar-se nesse espaço corporal em que habita. É tão importante para a vida quanto o prazer. Enquanto na dor aguda o sistema de alerta induz o sujeito a tomar medidas protetivas urgentes, na dor crônica esse sistema de alarme parece quebrado e insistente, sendo assim muito mais suscetível a provocar incapacitações e prejuízos a longo prazo.


Desse modo, a dor crônica é muito mais do que simplesmente uma dor aguda prolongada. Conforme Gastão Neto, pesquisador da área de anestesiologia, "por ser uma patologia complexa, ela não permite a simples aplicação de conceitos fisiopatológicos da dor aguda”. Em termos de impactos emocionais, os modos de vivenciar a dor também costumam ser substancialmente diferentes. A dor aguda mais relacionada ao temor e a situações de perigo, enquanto a dor crônica produzindo desgaste a longo prazo. Na cronicidade, a função protetora da dor parece dar lugar à repetição cíclica.


Para Nasio, ela funciona como uma muralha entre a loucura e a morte. Por isso, não se morre de dor, pois sinaliza para a presença de uma força-afeto: "Enquanto há dor, também temos as forças disponíveis para combatê-la e continuar a viver". Ao mesmo tempo, a dor também articula-se com a presença do mal-estar na natureza humana. Em “Mal-Estar na Cultura”, Freud assinala três fontes de sofrimento humano: as forças da natureza, o próprio corpo e as relações interpessoais.


Podemos pensar a dor como uma espécie de ruído. Para o filósofo da medicina Georges Canguilhem, "a saúde é a inocência orgânica" e, na dor crônica, essa inocência é rompida continuamente. Na ausência da dor, podemos até esquecer que habitamos um corpo. Na dor, não: somos lembrados de que órgãos como a pele estão conectados com o mundo ao redor, que os nossos músculos recebem informações do nosso cérebro, entre outros processos que, na maior parte do tempo, não atuam com a atenção preponderante da consciência.


Grito e silêncio


Prejudicando a arquitetura da atenção do sujeito, a dor pode resultar em dificuldades para se concentrar ou relaxar, maiores problemas para dormir, irritabilidade. Podemos ainda pensá-la como uma imposição a que o corpo se vê submetido. Muitas vezes, a dor física pode ser vivida como uma espécie de objeto interno persecutório. A compreensão da dor, então, como uma espécie de outra-vida que habita o corpo para torturar o sujeito. Nesse contexto psicodinâmico, se junta a um sentimento de perseguição e de encurralamento psíquico.


Ainda hoje há uma representação comum nas pessoas de que a dor é uma experiência de punição ou de castigo: a ideia de que vive-se a dor porque uma lei, regra ou limite ético/moral foi transgredido. Ou seja, a dor, enquanto estímulo, atua concomitante à experiências de sofrimento, a qual é elaborada a partir da memória e da história de vida singular de cada um.


Desde o início da vida, as sensações corporais são formas de apreender o mundo. Trata-se de uma base para a existência psíquica e, assim, também impacta nas formas de estar no mundo e de senti-lo, da mesma maneira que a forma de "viver a dor" também se relaciona com a estrutura subjetiva de cada um. Pode-se viver a dor com culpa, como castigo, como reparação, como necessidade, com danos narcísicos, entre muitas outras possibilidades. É preciso ainda lembrar ainda que existe uma variedade de modos de sentir as dores fisicamente. Uma pergunta comum dos profissionais de saúde é pedir para que a pessoa explique melhor o que está sentindo, principalmente por comparações: "como uma pontada", "como algo me queimando", "como algo rasgando", "como uma pressão em cima" etc.


A dor impõe um outro tipo de economia de atenções. Nesse sentido, quando há lesão de órgão, "a libido é solicitada para recuperar o órgão corpóreo danificado" (Zeferino Rocha). De uma representação mental, o sujeito pode utilizar defesas diversas, a exemplo do recalque, enquanto que na dor das lesões há um imperativo. Freud sinaliza que aquele que passa por uma experiência dolorosa perde o interesse pelo mundo externo e por aquilo que não diz respeito ao seu sofrimento.


Costuma ser vivida, nesse sentido, como um dano na barreira de contato, produzindo uma maior sensação de vulnerabilidade, tanto física, como psíquica. No "Projeto para uma psicologia científica" (1895), texto em que Freud fez paralelos entre o sistema neuronal e o funcionamento psíquico, há a dedicação de um capítulo específico para abordar a questão da dor, salientando tanto aspectos quantitativos (um excesso de estímulos) como qualitativos (a experiência da dor).


Com base no trabalho do psicanalista francês René Roussillon, as pesquisadoras Marta Cardoso e Patrícia Paraboni escrevem que: "A descarga direta impede o trabalho do pensamento e do processo de mentalização, pois, quando a excitação é descarregada diretamente e de forma bruta, o aparelho fica esvaziado de energia, e o trabalho do pensamento não pode, então, ser empreendido". A dor é então vivida como uma descarga bruta que incita tensão. Nesse percurso, segundo os autores, a dor tem um efeito "antipsíquico", ao perturbar a possibilidade de representar o vivido.


É preciso reforçar, portanto, que além da dor crônica em si há sempre uma narrativa sobre essa dor. A dor física apresenta-se como uma sensorialidade de difícil possibilidade de ligação representativa. Ou seja, é complicado falar sobre a dor, parece possível, muitas vezes, apenas senti-la. Ao mesmo tempo, é impossível pensar que uma dor física também não carrega uma dor psíquica. Parte da contribuições dos profissionais da área psi (mas não só) é de resgatar e conectar a dor que se vive com a história singular de cada um.

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