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Do que não se calcula


"Never Think Before You Act" de M. C. Escher (1921)

O número de likes, calorias, passos dados em um dia, juros, riscos, metas batidas, de artigos publicados, cidades visitadas, amigos e relacionamentos. A psicanálise aponta para a dimensão do impronunciável como uma presença constante, então qual o lugar que temos dado ao que não se calcula, ao incalculável?


Se os números (ou o que eles, no fundo, representam) facilmente se transformam em cobiça, na mesma medida ganham poder de atropelar o desejo. Muito facilmente dentro desse contexto, os números inflamam o narcisismo e os imperativos idealizados do superego.


O discurso da contabilidade, de forma incessante, inscreve o sujeito na lógica de desempenho, facilitando a epidemia de um tipo de depressão descrita pelo sociólogo Alain Ehrenberg, que tem como maior característica um sentimento de "cansaço de si mesmo" ou ainda de "ausência de si mesmo".


Mais facilmente, os números jogam bem com a aparência, prato cheio para um social impregnado pelo valor da imagem. Nesse sentido, o trabalho de uma análise não é somente de explorar as fantasias individuais de cada sujeito, mas igualmente como essas fantasias se manifestam dentro do contexto social em que a pessoa vive.


Como lembra o psicanalista Thomas Ogden, o inconsciente não está escondido em um baú, ele está no nosso próprio movimento como sujeito, na nossa imaginação e uso de linguagens - e, poderíamos acrescentar, na nossa relação com a lógica dos cálculos e do desempenho.


É justamente no limite do “não tenho mais o que dizer sobre isso” que mora alguma possibilidade de transformação subjetiva. Tentando se apropriar dos termos matemáticos, é justamente do resto, aquele valor feio e com virgulas de um cálculo final, que uma análise tenta se aproximar.


As formas que adaptamos a nossa subjetividade aos discursos hegemônicos costuma ser imperceptível. De tão perto não é visto. Apesar da psicanálise ser conhecida por ser um método de suposta "cura pela palavra", talvez seja justamente pela desconfiança em relação a elas. Curar-se pela palavra não quer dizer falar até cansar. Assim como não há vida sem o que foge a qualquer medição.


Os números são mais suscetíveis a organizações, tabelas, compilados, rankings. No mesmo nível, também podem ser mais intimidadores. Números parecem inquestionáveis, apesar de não serem e poderem, inclusive, serem facilmente manipulados sem necessariamente distorcidos.


Quando ambicionamos números, o que, de fato, estamos buscando? A quantificação da vida, diferente do verniz objetivo e frio que costumamos dar aos números (como se espalhassem verdades apenas por sua menção), são facilmente manipuláveis para tornarem-se armadilhas ou ilusões. Então, é necessário pensar sobre o que o império da contabilidade nos subtrai em termos de possibilidade de imaginação.


Uma boa parte da experiência analítica é de produzir um estranhamento: do familiar ao infamiliar. Onde há repetição, produzir uma descontinuidade. Isso também ocorre em relação aos discursos sociais, senão facilmente uma análise se torna um modo chique de adaptação social. O que, então, se perde de vista quando números são fetichizados?


A lógica do cálculo constante, muito próxima da cultura do desempenho, nos remete às esferas mais íntimas da vida psíquica: o narcisismo e a dependência humana de reconhecimento. No livro Alfabeto das Colisões, Vladimir Safatle escreve que "esse excesso fora do cálculo tem um nome: desejo, e às vezes ele é tudo o que nos sustenta".


A contagem e medição de quase tudo (sempre há um resto que insiste) afeta a capacidade de imaginação, de pensar sobre o que poderia ser diferente, inclusive, a nível social. De modo equivalente, reforça um tipo de ansiedade muito comum nos dias atuais: a ansiedade de desempenho, relacionada a medidas de produtividade e de sucesso.


O filósofo Jacques Derrida dizia algo como “aquilo que você não consegue falar, é necessário escrever”. De algum modo, a lógica da contabilidade parece limitar a possibilidade tanto do que podemos dizer ou escrever, servindo muito mais à cultura de desempenho e de metas.


A lógica de cálculo, nesse ponto de vista, é uma ferramenta de produção de subjetividades. Ou seja, ela determina como as pessoas desejam, cobiçam, temem, anseiam. De algum modo, a medição compulsória parece limitar a possibilidade do que pode ser sonhado, servindo muito mais à cultura das metas.


A partir da inquietação e do estranhamento, o discurso hegemônico pode, talvez, deixar de ser um imperativo em que cada um deve se dobrar para tornar-se, minimamente, somente em uma escolha.

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