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Diálogo interno e auto-observação

Atualizado: 20 de out. de 2023


"Faraway looks" de Rene Magritte (1927)

Meu nome é Rafael Santos Barboza, sou psicólogo (CRP 06/142198) e psicanalista, atuando com atendimentos de forma remota/online. Nesse texto, discuto a ideia de que o diálogo interno pode ser influenciado pelo superego, que pode se manifestar através de uma voz crítica e feroz.

Texto: No contexto da pandemia do Covid-19, em que muitos estão em processo de isolamento, uma companheira que sempre esteve presente, pode estar ainda mais evidente: nossa própria voz interna. Nesse texto, será dada ênfase à dimensão do superego em relação a esse tema, ou seja, o diálogo interno crítico e feroz. Não se trata, contudo, do único ângulo possível para reflexão, pois o que se chama de diálogo interno também é recurso de apreensão consciente, a exemplo de quando se tenta solucionar um problema matemático ou mesmo enquanto se lê um livro. Além disso, o ideal do ego e o narcisismo também são conceitos possíveis para pensar a questão.


De início, é importante destacar que diálogo interno não é sinônimo de inconsciente, mas possui relação com o dinamismo psíquico em sua complexidade, o que inclui os efeitos das pulsões e fantasias inconscientes. Outro ponto interessante é que a voz do diálogo interno é uma voz não sonorizada, que pode se "enrolar" em ruminações, ou seja, repetições que não conseguem ser elaboradas/transformadas.


A utilização da expressão “diálogo interno” parece mais precisa do que “monólogo interno”, uma vez que a primeira já aponta para a divisão do sujeito. Um diálogo também no sentido de haver emissor e receptor e de se ter um endereçamento, mesmo que isso se dê na cadeia psíquica do próprio sujeito. Nesse ponto, vemos os efeitos do “anzol da linguagem”, invadindo nosso corpo e produzindo costuras.


A dimensão do superego


Muitas vezes, o superego se reveste de uma voz internalizada (mesmo que não sonorizada), produzindo importantes repercussões nos diálogos internos. Essa voz que observa, julga, critica, provoca. Voz que é íntima, mas ao mesmo tempo parece estranha e estrangeira, vinda de territórios desconhecidos. Faz do eu um objeto, oferecendo a possibilidade de um certo distanciamento sobre nós mesmos, mais próximo do que se chama de consciência, mas também produz um tipo uma alienação, mais perto dos poderes do superego.


Segundo o psicanalista Antonio Quinet, "o supereu vocifera ordens, pois é uma instância vocal" (em Teoria e Clínica da Psicose). Algumas perguntas importantes podem ser: Como essa voz foi construída? De que material humano ela é feita? Trata-se de uma voz ou, talvez, de um coral ouvido de forma uníssona, que engloba as nossas experiências?


De modo geral, o superego demonstra sua força de modo intrusivo e invasivo na vida de fantasia do sujeito. O prefixo "super" designa algo que está acima e não em excesso: acima do ego, portanto, e não excesso de ego. O superego na psicanálise relaciona-se à segunda tópica de Freud: id, ego e superego. Tal instância pode se tornar ainda mais feroz em patologias como a melancolia e o luto patológico, entretanto, o superego é uma dimensão importante para se pensar a constituição de todo sujeito.


Acrescenta-se a isso a onisciência do superego, uma vez que é uma instância ligada ao inconsciente, o que faz com que a diferença entre uma agressão pretendida e uma agressão executada tenha menos importância, de acordo com Freud. Está relacionado a uma instância censuradora, recalcadora, domadora das pulsões inconscientes, atrelada, portanto, à socialização humana.


"Segundo Freud, a formação do superego é correlativa do declínio do complexo de Édipo: a criança, renunciando à satisfação dos seus desejos edipianos marcados de interdição, transforma o seu investimento nos pais em identificação com os pais, interioriza a interdição", afirma Laplanche e Pontalis no seu Vocabulário da Psicanálise. A famosa tirania do superego adviria do fato dessa instância atuar como uma "esponja" da agressividade que não pode ser expressada e é, então, redirecionada internamente.


O superego, portanto, age através de uma "função judiciária", emitindo ordens, proporcionando julgamentos. Possui, assim, uma força coercitiva, que submete o sujeito às suas próprias leis. Das mais diversas maneiras, diretas e mais sutis, o superego costuma aparecer no discurso através do "tenho que" e dos julgamentos que circulam no contexto de imperativos.


Diferente de Freud, autores como Melanie Klein pensaram o superego de outra forma, principalmente a partir do pressuposto de que ele surge em um momento anterior ao Complexo de Édipo, relacionado às primeiras trocas entre bebê e sua figura de cuidado. Lacan acrescenta que o superego é uma "lei desprovida de sentido", ou seja, a relação com a lei se dá de forma insensata, paradoxal, ilógica. Além disso, o psicanalista francês complexifica o papel do superego ao abordá-lo enquanto um encargo ao gozo, tornando o próprio gozo uma lei. Em psicanálise, vale reforçar que gozo não é sinônimo de prazer (ou de desprazer), ultrapassando tais limites, como uma espécie de satisfação paradoxal do inconsciente, apontando para o excessivo e o inominável.


Marta Ambertín em "Imperativos do Supereu" desenha a configuração paradoxal do superego que oscila entre ser herdeiro, ao mesmo tempo, do Isso (no sentido do pulsional) e do complexo de Édipo (no sentido da interdição). Dentro desse mesmo sentido, para Naiana Cordeiro e Angélica Bastos, "a própria noção de lei também vai se transformando: de uma lei proibitiva, reguladora, para uma lei insensata, entremeada de gozo".


Assim, o superego freudiano está mais próximo de uma função que diz "Não!", enquanto Lacan aborda o superego em seu enlaçamento com o real, como uma instância que também incita ao gozo.


Auto-observação


Em relação aos diálogos internos, a auto-observação é um componente fundamental para se articular com o superego. Um exemplo disso se dá na melancolia, em que a autorecriminação é um aspecto importante, em que o sujeito costuma enxergar sua história sob uma perspectiva que põe o eu como um personagem degradante. Freud assinalou que "o superego da criança não se forma à imagem dos pais, mas sim à imagem do superego deles; enche-se do mesmo conteúdo, torna-se o representante da tradição, de todos os juízos de valor que subsistem assim através de gerações". Ou seja, o desenvolvimento do superego e sua severidade não tem relação com a realidade (os pais reais e suas leis reais, por exemplo), mas com as fantasias.


O superego transforma a contingência (uma possibilidade entre várias possibilidades) em uma necessidade (algo que o sujeito simplesmente não pode abrir mão), desvelando o seu aspecto feroz e rígido, que é jogado contra o próprio sujeito. Trata-se de um juiz internalizado, que censura, mas também dá ordens ou que julga quando ordens não são cumpridas. Representa o id, assim como o mundo externo e seus pactos sociais.


Mesmo doenças como uma infecção viral ou bacteriana, por exemplo, pode ser vivida pelo sujeito como um castigo. As forças do superego, ao longo do tempo, vão se despersonalizando das figuras dos pais ou professores, tornando-se difusas, podendo assumir, inclusive, as vestes do próprio Destino, enquanto um futuro vivido como instância punitiva e agressiva.


A partir de Lacan, o filósofo esloveno Slavoj Zizek faz um esquema conceitual didático, aqui ainda mais resumido: o eu ideal: imagem (imaginário); o ideal do eu: observação e julgamento (simbólico) e o superego: crueldade, exigências (real). Em artigo, Breno Pena sinaliza que Freud pensa o superego mais como uma instância hipermoral, enquanto Lacan o dimensiona na perspectiva do gozo: “Lacan desvincula o supereu da proposta freudiana de herdeiro do complexo de Édipo, situando-o, não mais como moral, o que propunha Freud, mas como amoral, um agente da pulsão de morte que impõe somente uma ordem: goze!".


O diálogo interno, portanto, é um ponto de cruzamento entre leis internalizadas, interdições e imperativos, em que o laço social, por onde circulam ideais e normas, também possui interferência direta. Um dos desafios do analista na clínica é de não se colocar no lugar de modelo ou ideal, pois, de tal forma, apenas substituiria o modelo superegóico do analisando, que impregna a sua vida fantasmática e o aliena do seu desejo e da sua voz mais original e inventiva.


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