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Covid-19 e intensificação de conflitos

Atualizado: 15 de jul. de 2021


"Lady at the Piano" de Felix Vallotton (1904)

Esse texto é dedicado a pensar algumas questões que emergem a partir da pandemia da doença Covid-19, causada pelo vírus Sars-Cov2, O conteúdo está separado em três temas: Negacionismo, Quarentena e Sociedade do Desempenho, escritos ao longo do período de isolamento social


Negacionismo


O escritor de ficção científica Philip K. Dick disse ter produzido mais de 30 romances para tentar responder a uma única pergunta: "O que é a realidade?". Um dia, uma estudante canadense pediu para que ele tentasse definir em apenas uma frase a resposta para essa pergunta. A sentença criada, para Dick, não é a definitiva, mas a frase que ele considera que foi o máximo que conseguiu se aproximar: "A realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não vai embora". O discurso negacionista costuma construir a sua realidade alternativa baseado naquilo que consegue enxergar, apagando o que não está no seu campo de visão: se eu não vejo as calotas polares derretendo, o aquecimento global não existe; se eu não tenho registro dos horrores do nazismo, aquilo não deve ter ocorrido; se eu não sofro determinados tipos de opressões, não existe discriminação; se eu não consigo ver um vírus à minha frente, trata-se de uma mera invenção ou alarde. No contexto político, essa aparente "ignorância" é utilizada com o objetivo desmontar projetos, representatividades e políticas públicas, para o bem de interesses específicos. O discurso anti-científico coloca em risco dados e pesquisas confiáveis e ressoa no Brasil há tempos, sendo reflexo de uma conjuntura histórica, mas é amplificado pelas autoridades, como estratégia de governabilidade. A pandemia atual parece escancarar o organismo social de cada país afetado, intensificando problemas crônicos de falta de saúde pública, desigualdade social, xenofobia, etarismo, precarização trabalhista, entre outros. Para Christian Dunker, "o negacionismo se apoia nesse mecanismo da gente não querer mudar, de não querer se transformar, de não querer ser consequente com o que a história pode nos ensinar". Não à toa, o negacionista é, geralmente, aquele que se nega a aprender uma lição. A ciência, por si, é conflitante e não busca respostas únicas, indiscutíveis. O negacionismo parece usar isso para propagar distorções ou apagar fatos e dados. Em psicanálise, a negação é um famoso mecanismo de defesa, em que o sujeito nega aquilo que não consegue dar conta naquele momento. Já o negacionismo é muito mais amplo, pois constrói ideias não só sobre quem somos, mas também do funcionamento do mundo de uma maneira geral. A realidade da pandemia atual nos lembra que somos uma espécie entre outras, interdependentes, e que a noção de individualidade como uma unidade é frágil e insustentável. A psicanálise, a partir de Freud, também demonstrou isso de outra forma: sequer temos um acesso transparente às nossas próprias verdades. A crise epistemológica e científica não surgiu de agora, mas possui relações sobre como a ciência, ao longo dos anos, teve dificuldades em dialogar com o campo social. No meio disso, as redes sociais fortaleceram a ideia de que nossas opiniões valem mais que fatos. Para Christian Dunker, "a pós-verdade é uma ética e não apenas uma incorreção cognitiva". Pandemias como a atual demonstram que o negacionismo não é simplesmente um problema de falta de informação, mas uma ferramenta para desconectar os sujeitos das suas próprias realidades.


Quarentena


O termo "quarantena" remete à época da doença que ficou conhecida como peste: quarenta dias era o tempo indicado para que um navio ficasse no mar, sem contato com outras pessoas. No contexto atual, a quarentena também dá a sensação de estarmos aguardando em alto-mar, ancorados e separados das nossas rotinas tão bem conhecidas, enquanto o tempo continuar a correr. Em “A Peste”, de Albert Camus, uma doença infecciosa se espalha por uma cidade da Argélia. O ponto de vista da obra se dá a partir de um médico local. A agonia da espera é um dos grandes temas existenciais do livro: "Nesse verão, pelo contrário, o mar próximo estava interditado e o corpo já não tinha direito às suas alegrias. Que fazer nessas condições?". As pandemias também rasgam as fronteiras do privado e do público, do individual e do social. O ato de recolher-se em casa, por exemplo, torna-se um assunto de saúde pública. Cada um se vê como parte de um organismo, não mais como um átomo isolado (ou assim deveria). Em “Ensaio Sobre a Cegueira” de José Saramago, a epidemia é a de uma cegueira que coloca diversas pessoas em quarentena, dessa vez em manicômios abandonados. A “cegueira” abordada no livro possui uma diversidade de significações, incluindo um modo de ver a própria humanidade (“Provavelmente, só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”). Diante de incertezas como a que a pandemia atual coloca, nossa imagem prevista no reflexo de um espelho surge borrada, desestruturada. O nosso precário sistema de crenças sobre o futuro é derrubado e, à frente, surge o que sempre estava presente: o instante radical, continuamente produzido, entre o que não existe e o que ainda irá surgir. Pandemias como as do coronavírus suspendem essa autohipnose, abrindo espaço para a natureza desconhecida, limitada e indomável do tempo. Mas além de borrar o futuro, também revelam o nosso modo de vida presente. Conforme a dica de José Saramago, “se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.


Sociedade do Desempenho


O antropólogo Marshall Sahlins escreveu que "um povo que concebe a vida exclusivamente como busca da felicidade só pode ser cronicamente infeliz". Mesmo no contexto da pandemia e a necessidade de distanciamento social, chove discursos que visam aumentar ou manter a produtividade do sujeito, como se não estar constantemente se aperfeiçoando fosse sinônimo de vergonha ou ser deixado para trás. Em O Tempo e O Cão, a psicanalista Maria Rita Khel já sinaliza para os riscos desse tipo de modo de vida: "Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio. É preciso 'aproveitar' o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem descanso". Por trás do discurso da dedicação e do controle das atividades, pode haver a ideia de um novo modelo de subjetivação: a do sujeito se vendo como uma espécie de empresa. Trata-se de um processo que diferencia-se, por exemplo, da época de Freud. O sujeito pode sentir-se culpado por ter não ter batido a sua própria meta (aqui a semelhança com a gestão de uma empresa). A configuração do social produz processos específicos de subjetivação. Não significa dizer que o sintoma é um produto social, mas tal dimensão interfere na nossa "atmosfera psíquica". Não à toa, a sintomatologia mais típica da histeria, a conversão, por exemplo, hoje é mais rara, dando lugar às crises de ansiedade. Enxergar-se como uma empresa possui uma perigosa proximidade com a ideia de insucesso e fracasso. Ou seja, em que ponto começa o cuidado de si e onde começa a brutalização para tornar-se "a nossa melhor versão?" - outra expressão, aliás, que parece mais apropriada a um produto ou serviço do que a uma pessoa, com suas complexidades. Em Sociedade do Cansaço, o filósofo Byung-Chul Han analisa a passagem do sujeito da obediência para o sujeito do desempenho, em que o mesmo "jamais alcança um ponto de repouso da gratificação" e "vive constantemente num sentimento de carência e de culpa. E visto que, em última instância, está concorrendo consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir".

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